Sábado de aleluia, dez horas da manhã, sozinho em casa defronte a tela do computador... Há tempo – mais de um mês, eu creio – que comecei a me sentir como se estivesse a perder todas as coisas que tenho, como se estivesse prestes a abandonar tudo e a ter de começar tudo de novo a partir do nada. Encontro agora um momento propício para me expressar, e agora vou tentar contar um pouco de tudo o que tenho sentido nesses últimos dias – talvez estes sentimentos sejam comuns a algumas pessoas.
Hoje, assim que acordei, tive vontade de reler os poemas de Álvaro de Campos, o heterônimo angustiado de Pessoa. Comecei a lê-los, e percebi que estou a me sentir como o próprio Álvaro se sentia em algumas das vezes que escreveu...
Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer facto?
Estou só, só como ninguém ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.
Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.
É assim que me sinto hoje. Falta-me um sentido, um tato, para a vida, para o amor, para a glória... Não tenho mais nenhum objetivo concreto para o meu futuro. Não possuo mais nenhum sonho. Vivo sem saber o que esperar da vida, como se não desejasse mais nada para ela... Posso ser tantas coisas diversas, e não tenho o mais vago desejo de ser coisa alguma...
Lisbon Revisited (1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
(...)
Até um mês atrás eu ainda estava decidido de tudo o que desejaria ser no futuro. Pensava em me tornar um professor, um acadêmico dedicado ao estudo dos problemas humanos. Talvez um filósofo, um historiador, ou um psicólogo. Antes um filósofo... Era Filosofia o curso que eu pretendia cursar. No entanto, algo aconteceu – não sei o quê – que me fez cansar da Filosofia, que me fez abandonar de um momento para outro todo o interesse pelo estudo dessas questões.
De fato, cansei-me de pensar sobre a vida humana, e quis, em vez de investigar o comportamento do homem, viver como o homem simples que não se investiga. Cansei-me de tanto me questionar sobre o que seria a morte, o amor, o sentido da vida, e quis viver, amar e morrer sem ter de saber nada sobre tudo isso.
Além de tudo, percebi que, como professor de Filosofia, eu estaria recluso a um círculo de convivências muitíssimo fechado, o círculo dos intelectuais – esses insossos intelectuais, que parecem não ter vida, que parecem não sentir nada, que de tão frios se assemelham a plantas, a fantasmas... E são justamente esses intelectuais que estudam o homem... E como podem ter a pretensão de compreender o homem se não vivem como os homens comuns? Como ousam falar do amor se a maioria deles nunca sentiu o amor na vida? Como julgam ser capazes de falar das dores existenciais, da angústia que é viver, se passam todos os dias sentados numa mesa de biblioteca a simplesmente folhear livros? Falam de algo que nunca viveram e nunca sentiram... A análise que eles fazem da vida, eu agora percebo, deve ser sempre incompleta, por falta de experiências próprias.
Eu tomei a decisão de participar dos conflitos da vida, conflitos próprios às vidas de todos os homens comuns. Decidi entrar no meio deles, e não apenas observá-los. Quis ter histórias na minha vida para contar, e não apenas estudar as histórias das vidas alheias. Resolvi tornar-me um homem simples e comum e levar uma vida normal, que em nada difere das vidas comuns, por pensar que somente dessa forma é que poderei viver plenamente a vida.
E agora que passei a viver a vida como todas as pessoas a vivem, surgiu-me uma dúvida, comum a muitos que se encontram na minha idade, e que me deixa angustiado... Eu quis construir uma história para a minha vida, e agora me pergunto: qual será a história da minha vida? O que quero agora para a vida, agora que posso escolher o que vou ser, eu, que não vejo graça em mais nada, eu, que me esforço, mas não consigo ter mais nenhuma vontade?...
Faróis distantes,
De luz sùbitamente tão acesa,
De noite e ausência tão ràpidamente volvida,
Na noite, no convés, que consequências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar...
Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...
Fárois distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...
Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes...
.....
Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade
(...)
Havia quatro anos que eu estava decidido a estudar algo como Filosofia, e fui desistir justo no último ano que tenho para decidir o que estudar. Foram as circunstâncias da minha própria vida, das quais não preciso falar agora, que me haviam levado a ter, desde a infância, uma personalidade mais filosófica... Desde pequeno, por motivos próprios, eu enxerguei tudo ao meu redor com olhos diferentes. E agora, que não quero mais ser diferente, sou obrigado a escolher uma forma de ser igual. E para ser igual, posso optar entre tanta coisa diversa... Mas não consigo me interessar por nada...
Antes, eu tinha um objetivo claro, definido: terminar os estudos no Colégio, abandonar a vida interiorana, mudando-me para Belo Horizonte ou São Paulo, ingressar na universidade no curso de Filosofia, fazer mais tarde um mestrado e um doutorado – eu sonhava em conseguir uma vaga em Coimbra ou Paris... –, e por fim ser um professor ou um pesquisador universitário. Agora que não quero mais nada disso, não sei o que querer. Posso ser tanta coisa, que me perco em meio às múltiplas possibilidades de escolha. Antes eu tinha uma certeza, uma definição para o meu futuro. Agora sou obrigado a defini-lo em alguns meses, e mal sei por onde começar.
Posso cursar medicina e depois ir trabalhar como médico no norte do país, no meio da Amazônia, onde os médicos se enriquecem hoje... Mas não é isso o que vou escolher, porque não me passa pela cabeça abandonar a civilização. Também posso cursar direito e depois prestar concurso para juiz, desembargador, ou qualquer coisa do tipo, ou ser mesmo um simples advogado, mas também não é isso o que quero... Também posso cursar engenharia e ter a profissão de engenheiro... Mas o que tenho eu a ver com um engenheiro? Nada... No entanto, por incrível que pareça, já acho que é pela engenharia que vou optar, mesmo não sendo do meu agrado. Mas não há nada mesmo que seja capaz de me agradar...
E mesmo depois de engenheiro formado – um absurdo, pois nunca pensei que fosse me tornar engenheiro –, ainda terei muita escolha a fazer... Eu poderei ir trabalhar numa plataforma de extração de petróleo em alto-mar na Bacia de Campos, na usina de energia atômica de Angra, na refinaria de petróleo de Betim, no estaleiro de construção naval de Rio Grande... Poderei ser mandado para tantos lugares diferentes, que pareço estar à mercê do meu próprio destino. Parece-me que perdi o controle sobre o meu futuro.
Hoje tudo para mim parece ser muito incerto. Não tenho mais a certeza de nada do que serei na vida. Eu quis deixar de ser alguém para me tornar uma outra pessoa. Já não sou mais aquele primeiro homem, e na tentativa de ser esse segundo, perco-me na tentativa de construí-lo. E é essa incerteza sobre mim mesmo que me faz sentir angustiado...
(...)
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
Arrumo melhor a mala como os olhos de pensar em arrumar
Que com a arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).
(...)
Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como o boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
(...)
.....
Reticências
Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
(...)
Tenho ainda uma escolha para fazer em poucos dias: a cidade para a qual me mudarei, já agora no final do ano. E até então, o que pode parecer absurdo para quem já se encontra quase na metade do último ano da vida escolar, não sei para onde quero ir. Posso ir tanto para uma grande metrópole como São Paulo, como para uma pequena cidade do interior de Minas, como Viçosa. E tenho tantos lugares para onde ir... Mas como posso saber se vou ser mais feliz, por exemplo, em Ribeirão Preto ou em Uberlândia?, em Belo Horizonte ou no Rio de Janeiro?, em Campinas ou Londrina?, em Ponta Grossa ou em Curitiba?... Posso ir para tantas cidades diferentes, mas mesmo antes de partir já sinto saudades da minha terra natal... Estou sendo obrigado a traçar os rumos do meu futuro, mesmo sem ter uma certeza clara do que espero para esse futuro...
Pela profissão, acho que já estou quase decidido: vou ser mesmo engenheiro, elétrico ou químico – tendo mais para a engenharia química. No entanto, não gosto de engenharia, nem de química. Vou ser engenheiro simplesmente porque espero ter uma profissão comum e valorizada por todos, porque quero parecer uma pessoa comum, fingindo que valorizo tudo o que todo o mundo valoriza e que gosto das mesmas coisas de que todo o mundo gosta. Espero conviver com pessoas comuns e normais... Não mais o círculo fechado dos acadêmicos frios. Não mais as livrarias, os cafés, os ambientes intelectualizados. Agora, as ruas e as praças... Agora, a vida, tal qual ela é, do lado de fora das universidades... Nem que para isso eu tenha de ser um engenheiro químico...
..........
Agora já são duas horas da tarde e, depois de um almoço em família na casa de minha avó, do qual meu pai e minha mãe sempre estão ausentes, volto a escrever... Acho que ainda tenho sentimentos para expressar.
(...)
As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,
Em outra maneira de ser?
Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos que pensei ter?
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?
.....
Trapo
(...)
Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
(...)
Eu tenho a sensação de que nunca vou estar preso a lugar algum, que nunca terei vínculos duradouros com as pessoas, que estarei sempre perdido no acaso das ofertas de trabalho, acaso este que nos pode levar ao mundo inteiro...
Minha família... Este é o último ano em que viverei na casa de minha mãe, meu pai e meu irmão. Eu certamente voltarei para cá para passar as férias, mas nunca mais morarei sob o mesmo teto desses meus familiares. Meus avôs e minhas avós... Já se vão ficando todos velhos... Eu percebo que eles têm envelhecido desde a minha infância... Uma década se passou desde quando eu tinha sete anos, e quando eu tinha sete anos meu avô jogava futebol comigo no clube. Nessa época, ele ainda tinha forças para chutar a bola, e agora mal consegue se locomover sozinho... O tempo passa e tudo se vai perdendo na vida... Pode ser que eu perca um ou mais de meus avôs ou avós enquanto estiver distante. “Pode ser” não, eu com certeza os perderei enquanto estiver distante, porque depois do fim deste ano estarei para sempre distante de tudo o que tive nesta primeira fase da minha vida...
Nunca mais a convivência com as pessoas da minha família voltará a ser a mesma, eu creio. Nunca mais os meus amigos poderão estar por perto, meus amigos de infância e juventude... Nunca mais os mesmos amores juvenis por perto... Terei de conhecer pessoas novas, terei de fazer novos amigos – serão eles verdadeiros como os que tenho hoje? –, terei de me encantar com mulheres novas... Terei de construir um círculo de convivências completamente novo para não viver sozinho no mundo. E quando tudo parecer ter voltado de novo ao seu lugar, quando eu tiver voltado a ter pessoas ao meu redor, quando eu tiver me acostumado a essas novas convivências, a esses novos vínculos, a esses novos laços, depois de tudo isso, pode ser que eu seja transferido de uma cidade a outra, pode ser que o destino me mande novamente para um lugar bem distante daquele no qual estarei, e então eu terei de começar tudo de novo...
A verdade é que hoje todos vivem em função da economia. O Brasil vive em função do petróleo recém-descoberto, da indústria que cresce e se multipolariza, dos recursos naturais que vão sendo encontrados em todos os cantos do seu território. O engenheiro, principalmente, vive em função da infra-estrutura, que não pode parar de crescer. A mão-de-obra vai sendo constantemente deslocada de ponto a ponto, dentro deste país imenso. E eu, como parte integrante dessa mão-de-obra a serviço desta nação emergente, creio que viverei sempre próximo da possibilidade de ser deslocado de um lugar a outro. E me parece que nunca os vínculos criados sobreviverão, nunca os laços serão fortes o suficiente para não se romperem... Por que será que já penso nessas possibilidades todas? Já estou a sentir uma angústia por antecipação.
O florir do encontro casual Dos que hão sempre de ficar estranhos...
O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida...
O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...
As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem..
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim...
Eu queria viver em função dos afetos, em função das pessoas, das amizades, dos amores... Mas o tempo contemporâneo faz com que as pessoas, as amizades, os amores, as vidas, se troquem de ano a ano, se substituam constantemente... Ele faz com que tudo nesta vida sejam desencontros... Hoje, todo novo encontro já traz consigo a semente da despedida. O principal motivo pelo qual me sinto angustiado é por ter de abandonar os meus amigos de hoje e pensar que nunca mais encontrarei pessoas dispostas criarem verdadeiras amizades... É por pensar que nunca encontrarei um amor verdadeiro ao qual possa me prender, que terei sempre apenas casos de pouco valor aqui e acolá, casos temporários e sem compromisso... Não a profissão, não a carreira; para mim, o sentido da vida está nas pessoas... Mas a vida de hoje não quer que o seu sentido seja as pessoas. Acho que é por isso que me sinto como se não tivesse mais um tato para a vida e para o amor.
Na idade média, as pessoas passavam suas vidas inteiras no interior de um feudo, e do dia em que nasciam até o dia em que morriam, conviviam sempre com as mesmas pessoas que habitavam dentro desse feudo. Hoje, se saímos à rua numa cidade grande, vemos, num minuto de caminhada, mais pessoas do que um homem medieval veria na sua vida inteira. Hoje as pessoas passam por nós sem que possamos saber nada a respeito delas, e isso me gera uma certa angústia... Infames comerciantes aqueles que transpuseram as muralhas dos feudos e principiaram a dinamizar o mundo... Infames navegantes aqueles portugueses que partiam da sua terra natal deixando nela tudo o que possuíam e iam se aventurar nos mares e nos oceanos... Foi por culpa desses primeiros burgueses e desses navegantes que o mundo viria a ser o que é hoje, que a sociedade humana viria a se tornar tão caótica quanto é... Foi por causa deles que teve início o capitalismo, e talvez tenha sido por causa deles que as relações humanas vieram a se tornar tão efêmeras e tão vazias...
E agora que estou falando em navegações e em portugueses, lembrei-me de um poema que fala sobre isso, e que serve para mais reflexões – este, um hortônimo de Fernando Pessoa.
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição de raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo em que eras vêm.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
Fernando, meu grande poeta, perdoa-me, mas agora tenho de discordar de ti! Por que há de ser feliz quem é triste? Por que é necessário ser descontente para ser homem? Não penso assim...
Talvez eu tenha na alma um pouco do caráter português... Mas minha alma não é a alma do Sebastião valente que pereceu a enfrentar os mouros... Não é a alma do Bartolomeu Dias corajoso que ousou perpassar o Cabo das Tormentas... Se eu fosse português, eu teria a alma presa à terra – à terrinha portuguesa pequena e que sem esses espíritos aventureiros e ambiciosos nunca teria sido nada no mundo. Se posso dizer que me assemelho em algum aspecto com algo português, digo que o meu “eu” é intimamente parecido com o eu-lírico daquelas cantigas de amigo... Minha alma se parece com a alma da mulher que canta angustiada à espera do regresso do seu amado...
Sou homem, mas acho que tenho uma disposição para o amor, e não só para o amor, mas para tudo na vida, uma disposição de mulher... Estou sempre à espera de tudo, nunca à procura. Se eu fosse um português na idade média, que eu nunca tivesse de ir até os vastos desertos do Oriente para lutar contra mouros, que eu nunca tivesse de navegar nas imensidões dos mares... Se eu tivesse vivido naquela época, eu teria sido o camponês que se contentou porque não teve de deixar a terra, o camponês que encontrava sua alegria em ter de cultivar a mesma terra todos os anos, em ará-la, em plantar a uva e a oliva, colher a azeitona e fazer o vinho... Não em descobrir mundos novos, não em partir em busca daquilo que cá na terra não existia, não em procurar sempre por aquilo que não se tinha. Sou feliz quando consigo contentar-me com o que tenho, não quando preciso sair à procura do que não tenho. Minha maior ambição talvez seja não possuir ambição alguma, ou pelo menos não possuir grandes ambições...
Agora, no entanto, sou obrigado pela vida a me tornar um desses navegantes. Estou prestes a deixar a terra e a me lançar ao mar, prestes a abandonar tudo o que me alegrava na pequenez dessa terra. E mesmo não estando disposto para isto, tenho de sair a encarar todas as tormentas dos mares... Sem estar provido de armas, a vida me manda a uma cruzada. Tenho agora de ser um homem. No entanto, ainda como homem, não consigo livrar-me dos sentimentos daquela amiga apaixonada. Sinto, nesta despedida da terra, não a euforia do soldado que parte para a guerra, ou a do navegante que inicia uma viagem rumo às Índias... Sinto antes a angústia do emigrante que por força tem de deixar o seu país, ou da amiga que se vê abandonada do pelo seu amigo. E despeço-me de tudo e de todos, sem desejar despedir-me...
E volte agora o espírito angustiado de Álvaro, aquele que ao contrário de Pessoa, e assim como eu, não sonha...
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
“Tudo vale a pena se a alma não é pequena” – dizia Pessoa. Mas e para quem tem a alma pequena, para quem tem a disposição fraca, a vontade escassa, para quem sente medo da vida e é covarde como eu, o que é que vale a pena, Fernando? Existirá algo no mundo que valha a pena para mim? Eu voltarei a achar graça de qualquer coisa? Talvez não seja para tanto, talvez eu esteja exagerando... Mas não, sei que estou apenas dizendo o que sinto...
E no final das contas, eu acabarei sendo mesmo um engenheiro. Mas se querem saber, o dono de todas essas filosofias expressas em poemas, esse próprio Álvaro de Campos, também era engenheiro... E como Álvaro, para que esteja completa a minha infelicidade, mesmo tendo por profissão a engenharia, talvez eu nunca consiga deixar de ser um filósofo... Talvez eu nunca pare de questionar o valor de todas as coisas e continue sempre com essa matemática fria da vida...
..........
Segunda-feira, três da tarde.
Se ao menos houvesse alguém a dar algo pela minha existência... Se ao menos existisse uma alma que viesse compartilhar essas angústias comigo... No entanto, se existisse uma pessoa assim, eu não teria escrito nada disso que escrevi, teria guardado os sentimentos, como sempre foi natural. Se escrevi, foi porque não encontrei alguém para quem pudesse dizer tudo. Ou talvez tenha sido porque desde criança eu não aprendi a contar os meus sentimentos, talvez essa pessoa até exista... Se há alguém que se tenha dado ao trabalho de ler tudo isso e que se vê na mesma situação que eu, que venha falar comigo...