segunda-feira, 5 de setembro de 2011

"O bonde tá passando..."

Para Laís Barcelos





O ter deveres, que prolixa coisa!
Agora tenho eu que estar à uma menos cinco
Na Estação do Rossio, tabuleiro superior - despedida
Do amigo que vai no "Sud Express" de toda a gente
Para onde toda a gente vai, o Paris...

Tenho que lá estar
E acreditem, o cansaço antecipado é tão grande
Que, se o "Sud Express" soubesse, descarrilava...

Brincadeira de crianças?
Não, descarrilava a valer...
Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile!...

Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.

Álvaro de Campos

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Tudo sobre como me sinto agora, ou o pouco do que consegui falar sobre isso...

Sábado de aleluia, dez horas da manhã, sozinho em casa defronte a tela do computador... Há tempo – mais de um mês, eu creio – que comecei a me sentir como se estivesse a perder todas as coisas que tenho, como se estivesse prestes a abandonar tudo e a ter de começar tudo de novo a partir do nada. Encontro agora um momento propício para me expressar, e agora vou tentar contar um pouco de tudo o que tenho sentido nesses últimos dias – talvez estes sentimentos sejam comuns a algumas pessoas.

Hoje, assim que acordei, tive vontade de reler os poemas de Álvaro de Campos, o heterônimo angustiado de Pessoa. Comecei a lê-los, e percebi que estou a me sentir como o próprio Álvaro se sentia em algumas das vezes que escreveu...


Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer facto?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.


É assim que me sinto hoje. Falta-me um sentido, um tato, para a vida, para o amor, para a glória... Não tenho mais nenhum objetivo concreto para o meu futuro. Não possuo mais nenhum sonho. Vivo sem saber o que esperar da vida, como se não desejasse mais nada para ela... Posso ser tantas coisas diversas, e não tenho o mais vago desejo de ser coisa alguma...


Lisbon Revisited (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

(...)


Até um mês atrás eu ainda estava decidido de tudo o que desejaria ser no futuro. Pensava em me tornar um professor, um acadêmico dedicado ao estudo dos problemas humanos. Talvez um filósofo, um historiador, ou um psicólogo. Antes um filósofo... Era Filosofia o curso que eu pretendia cursar. No entanto, algo aconteceu – não sei o quê – que me fez cansar da Filosofia, que me fez abandonar de um momento para outro todo o interesse pelo estudo dessas questões.

De fato, cansei-me de pensar sobre a vida humana, e quis, em vez de investigar o comportamento do homem, viver como o homem simples que não se investiga. Cansei-me de tanto me questionar sobre o que seria a morte, o amor, o sentido da vida, e quis viver, amar e morrer sem ter de saber nada sobre tudo isso.

Além de tudo, percebi que, como professor de Filosofia, eu estaria recluso a um círculo de convivências muitíssimo fechado, o círculo dos intelectuais – esses insossos intelectuais, que parecem não ter vida, que parecem não sentir nada, que de tão frios se assemelham a plantas, a fantasmas... E são justamente esses intelectuais que estudam o homem... E como podem ter a pretensão de compreender o homem se não vivem como os homens comuns? Como ousam falar do amor se a maioria deles nunca sentiu o amor na vida? Como julgam ser capazes de falar das dores existenciais, da angústia que é viver, se passam todos os dias sentados numa mesa de biblioteca a simplesmente folhear livros? Falam de algo que nunca viveram e nunca sentiram... A análise que eles fazem da vida, eu agora percebo, deve ser sempre incompleta, por falta de experiências próprias.

Eu tomei a decisão de participar dos conflitos da vida, conflitos próprios às vidas de todos os homens comuns. Decidi entrar no meio deles, e não apenas observá-los. Quis ter histórias na minha vida para contar, e não apenas estudar as histórias das vidas alheias. Resolvi tornar-me um homem simples e comum e levar uma vida normal, que em nada difere das vidas comuns, por pensar que somente dessa forma é que poderei viver plenamente a vida.

E agora que passei a viver a vida como todas as pessoas a vivem, surgiu-me uma dúvida, comum a muitos que se encontram na minha idade, e que me deixa angustiado... Eu quis construir uma história para a minha vida, e agora me pergunto: qual será a história da minha vida? O que quero agora para a vida, agora que posso escolher o que vou ser, eu, que não vejo graça em mais nada, eu, que me esforço, mas não consigo ter mais nenhuma vontade?...


Faróis distantes,
De luz sùbitamente tão acesa,
De noite e ausência tão ràpidamente volvida,
Na noite, no convés, que consequências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar...

Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...

Fárois distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes...


.....


Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade

(...)


Havia quatro anos que eu estava decidido a estudar algo como Filosofia, e fui desistir justo no último ano que tenho para decidir o que estudar. Foram as circunstâncias da minha própria vida, das quais não preciso falar agora, que me haviam levado a ter, desde a infância, uma personalidade mais filosófica... Desde pequeno, por motivos próprios, eu enxerguei tudo ao meu redor com olhos diferentes. E agora, que não quero mais ser diferente, sou obrigado a escolher uma forma de ser igual. E para ser igual, posso optar entre tanta coisa diversa... Mas não consigo me interessar por nada...

Antes, eu tinha um objetivo claro, definido: terminar os estudos no Colégio, abandonar a vida interiorana, mudando-me para Belo Horizonte ou São Paulo, ingressar na universidade no curso de Filosofia, fazer mais tarde um mestrado e um doutorado – eu sonhava em conseguir uma vaga em Coimbra ou Paris... –, e por fim ser um professor ou um pesquisador universitário. Agora que não quero mais nada disso, não sei o que querer. Posso ser tanta coisa, que me perco em meio às múltiplas possibilidades de escolha. Antes eu tinha uma certeza, uma definição para o meu futuro. Agora sou obrigado a defini-lo em alguns meses, e mal sei por onde começar.

Posso cursar medicina e depois ir trabalhar como médico no norte do país, no meio da Amazônia, onde os médicos se enriquecem hoje... Mas não é isso o que vou escolher, porque não me passa pela cabeça abandonar a civilização. Também posso cursar direito e depois prestar concurso para juiz, desembargador, ou qualquer coisa do tipo, ou ser mesmo um simples advogado, mas também não é isso o que quero... Também posso cursar engenharia e ter a profissão de engenheiro... Mas o que tenho eu a ver com um engenheiro? Nada... No entanto, por incrível que pareça, já acho que é pela engenharia que vou optar, mesmo não sendo do meu agrado. Mas não há nada mesmo que seja capaz de me agradar...

E mesmo depois de engenheiro formado – um absurdo, pois nunca pensei que fosse me tornar engenheiro –, ainda terei muita escolha a fazer... Eu poderei ir trabalhar numa plataforma de extração de petróleo em alto-mar na Bacia de Campos, na usina de energia atômica de Angra, na refinaria de petróleo de Betim, no estaleiro de construção naval de Rio Grande... Poderei ser mandado para tantos lugares diferentes, que pareço estar à mercê do meu próprio destino. Parece-me que perdi o controle sobre o meu futuro.

Hoje tudo para mim parece ser muito incerto. Não tenho mais a certeza de nada do que serei na vida. Eu quis deixar de ser alguém para me tornar uma outra pessoa. Já não sou mais aquele primeiro homem, e na tentativa de ser esse segundo, perco-me na tentativa de construí-lo. E é essa incerteza sobre mim mesmo que me faz sentir angustiado...


(...)

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
Arrumo melhor a mala como os olhos de pensar em arrumar
Que com a arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).

(...)

Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como o boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

(...)


.....


Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.

(...)


Tenho ainda uma escolha para fazer em poucos dias: a cidade para a qual me mudarei, já agora no final do ano. E até então, o que pode parecer absurdo para quem já se encontra quase na metade do último ano da vida escolar, não sei para onde quero ir. Posso ir tanto para uma grande metrópole como São Paulo, como para uma pequena cidade do interior de Minas, como Viçosa. E tenho tantos lugares para onde ir... Mas como posso saber se vou ser mais feliz, por exemplo, em Ribeirão Preto ou em Uberlândia?, em Belo Horizonte ou no Rio de Janeiro?, em Campinas ou Londrina?, em Ponta Grossa ou em Curitiba?... Posso ir para tantas cidades diferentes, mas mesmo antes de partir já sinto saudades da minha terra natal... Estou sendo obrigado a traçar os rumos do meu futuro, mesmo sem ter uma certeza clara do que espero para esse futuro...

Pela profissão, acho que já estou quase decidido: vou ser mesmo engenheiro, elétrico ou químico – tendo mais para a engenharia química. No entanto, não gosto de engenharia, nem de química. Vou ser engenheiro simplesmente porque espero ter uma profissão comum e valorizada por todos, porque quero parecer uma pessoa comum, fingindo que valorizo tudo o que todo o mundo valoriza e que gosto das mesmas coisas de que todo o mundo gosta. Espero conviver com pessoas comuns e normais... Não mais o círculo fechado dos acadêmicos frios. Não mais as livrarias, os cafés, os ambientes intelectualizados. Agora, as ruas e as praças... Agora, a vida, tal qual ela é, do lado de fora das universidades... Nem que para isso eu tenha de ser um engenheiro químico...


..........


Agora já são duas horas da tarde e, depois de um almoço em família na casa de minha avó, do qual meu pai e minha mãe sempre estão ausentes, volto a escrever... Acho que ainda tenho sentimentos para expressar.


(...)

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,
Em outra maneira de ser?
Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos que pensei ter?
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?


.....


Trapo

(...)

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

(...)


Eu tenho a sensação de que nunca vou estar preso a lugar algum, que nunca terei vínculos duradouros com as pessoas, que estarei sempre perdido no acaso das ofertas de trabalho, acaso este que nos pode levar ao mundo inteiro...

Minha família... Este é o último ano em que viverei na casa de minha mãe, meu pai e meu irmão. Eu certamente voltarei para cá para passar as férias, mas nunca mais morarei sob o mesmo teto desses meus familiares. Meus avôs e minhas avós... Já se vão ficando todos velhos... Eu percebo que eles têm envelhecido desde a minha infância... Uma década se passou desde quando eu tinha sete anos, e quando eu tinha sete anos meu avô jogava futebol comigo no clube. Nessa época, ele ainda tinha forças para chutar a bola, e agora mal consegue se locomover sozinho... O tempo passa e tudo se vai perdendo na vida... Pode ser que eu perca um ou mais de meus avôs ou avós enquanto estiver distante. “Pode ser” não, eu com certeza os perderei enquanto estiver distante, porque depois do fim deste ano estarei para sempre distante de tudo o que tive nesta primeira fase da minha vida...

Nunca mais a convivência com as pessoas da minha família voltará a ser a mesma, eu creio. Nunca mais os meus amigos poderão estar por perto, meus amigos de infância e juventude... Nunca mais os mesmos amores juvenis por perto... Terei de conhecer pessoas novas, terei de fazer novos amigos – serão eles verdadeiros como os que tenho hoje? –, terei de me encantar com mulheres novas... Terei de construir um círculo de convivências completamente novo para não viver sozinho no mundo. E quando tudo parecer ter voltado de novo ao seu lugar, quando eu tiver voltado a ter pessoas ao meu redor, quando eu tiver me acostumado a essas novas convivências, a esses novos vínculos, a esses novos laços, depois de tudo isso, pode ser que eu seja transferido de uma cidade a outra, pode ser que o destino me mande novamente para um lugar bem distante daquele no qual estarei, e então eu terei de começar tudo de novo...

A verdade é que hoje todos vivem em função da economia. O Brasil vive em função do petróleo recém-descoberto, da indústria que cresce e se multipolariza, dos recursos naturais que vão sendo encontrados em todos os cantos do seu território. O engenheiro, principalmente, vive em função da infra-estrutura, que não pode parar de crescer. A mão-de-obra vai sendo constantemente deslocada de ponto a ponto, dentro deste país imenso. E eu, como parte integrante dessa mão-de-obra a serviço desta nação emergente, creio que viverei sempre próximo da possibilidade de ser deslocado de um lugar a outro. E me parece que nunca os vínculos criados sobreviverão, nunca os laços serão fortes o suficiente para não se romperem... Por que será que já penso nessas possibilidades todas? Já estou a sentir uma angústia por antecipação.


O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos...

O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida...

O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...

As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem..

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim...


Eu queria viver em função dos afetos, em função das pessoas, das amizades, dos amores... Mas o tempo contemporâneo faz com que as pessoas, as amizades, os amores, as vidas, se troquem de ano a ano, se substituam constantemente... Ele faz com que tudo nesta vida sejam desencontros... Hoje, todo novo encontro já traz consigo a semente da despedida. O principal motivo pelo qual me sinto angustiado é por ter de abandonar os meus amigos de hoje e pensar que nunca mais encontrarei pessoas dispostas criarem verdadeiras amizades... É por pensar que nunca encontrarei um amor verdadeiro ao qual possa me prender, que terei sempre apenas casos de pouco valor aqui e acolá, casos temporários e sem compromisso... Não a profissão, não a carreira; para mim, o sentido da vida está nas pessoas... Mas a vida de hoje não quer que o seu sentido seja as pessoas. Acho que é por isso que me sinto como se não tivesse mais um tato para a vida e para o amor.

Na idade média, as pessoas passavam suas vidas inteiras no interior de um feudo, e do dia em que nasciam até o dia em que morriam, conviviam sempre com as mesmas pessoas que habitavam dentro desse feudo. Hoje, se saímos à rua numa cidade grande, vemos, num minuto de caminhada, mais pessoas do que um homem medieval veria na sua vida inteira. Hoje as pessoas passam por nós sem que possamos saber nada a respeito delas, e isso me gera uma certa angústia... Infames comerciantes aqueles que transpuseram as muralhas dos feudos e principiaram a dinamizar o mundo... Infames navegantes aqueles portugueses que partiam da sua terra natal deixando nela tudo o que possuíam e iam se aventurar nos mares e nos oceanos... Foi por culpa desses primeiros burgueses e desses navegantes que o mundo viria a ser o que é hoje, que a sociedade humana viria a se tornar tão caótica quanto é... Foi por causa deles que teve início o capitalismo, e talvez tenha sido por causa deles que as relações humanas vieram a se tornar tão efêmeras e tão vazias...

E agora que estou falando em navegações e em portugueses, lembrei-me de um poema que fala sobre isso, e que serve para mais reflexões – este, um hortônimo de Fernando Pessoa.


O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição de raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo em que eras vêm.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?


Fernando, meu grande poeta, perdoa-me, mas agora tenho de discordar de ti! Por que há de ser feliz quem é triste? Por que é necessário ser descontente para ser homem? Não penso assim...

Talvez eu tenha na alma um pouco do caráter português... Mas minha alma não é a alma do Sebastião valente que pereceu a enfrentar os mouros... Não é a alma do Bartolomeu Dias corajoso que ousou perpassar o Cabo das Tormentas... Se eu fosse português, eu teria a alma presa à terra – à terrinha portuguesa pequena e que sem esses espíritos aventureiros e ambiciosos nunca teria sido nada no mundo. Se posso dizer que me assemelho em algum aspecto com algo português, digo que o meu “eu” é intimamente parecido com o eu-lírico daquelas cantigas de amigo... Minha alma se parece com a alma da mulher que canta angustiada à espera do regresso do seu amado...

Sou homem, mas acho que tenho uma disposição para o amor, e não só para o amor, mas para tudo na vida, uma disposição de mulher... Estou sempre à espera de tudo, nunca à procura. Se eu fosse um português na idade média, que eu nunca tivesse de ir até os vastos desertos do Oriente para lutar contra mouros, que eu nunca tivesse de navegar nas imensidões dos mares... Se eu tivesse vivido naquela época, eu teria sido o camponês que se contentou porque não teve de deixar a terra, o camponês que encontrava sua alegria em ter de cultivar a mesma terra todos os anos, em ará-la, em plantar a uva e a oliva, colher a azeitona e fazer o vinho... Não em descobrir mundos novos, não em partir em busca daquilo que cá na terra não existia, não em procurar sempre por aquilo que não se tinha. Sou feliz quando consigo contentar-me com o que tenho, não quando preciso sair à procura do que não tenho. Minha maior ambição talvez seja não possuir ambição alguma, ou pelo menos não possuir grandes ambições...

Agora, no entanto, sou obrigado pela vida a me tornar um desses navegantes. Estou prestes a deixar a terra e a me lançar ao mar, prestes a abandonar tudo o que me alegrava na pequenez dessa terra. E mesmo não estando disposto para isto, tenho de sair a encarar todas as tormentas dos mares... Sem estar provido de armas, a vida me manda a uma cruzada. Tenho agora de ser um homem. No entanto, ainda como homem, não consigo livrar-me dos sentimentos daquela amiga apaixonada. Sinto, nesta despedida da terra, não a euforia do soldado que parte para a guerra, ou a do navegante que inicia uma viagem rumo às Índias... Sinto antes a angústia do emigrante que por força tem de deixar o seu país, ou da amiga que se vê abandonada do pelo seu amigo. E despeço-me de tudo e de todos, sem desejar despedir-me...

E volte agora o espírito angustiado de Álvaro, aquele que ao contrário de Pessoa, e assim como eu, não sonha...


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.


“Tudo vale a pena se a alma não é pequena” – dizia Pessoa. Mas e para quem tem a alma pequena, para quem tem a disposição fraca, a vontade escassa, para quem sente medo da vida e é covarde como eu, o que é que vale a pena, Fernando? Existirá algo no mundo que valha a pena para mim? Eu voltarei a achar graça de qualquer coisa? Talvez não seja para tanto, talvez eu esteja exagerando... Mas não, sei que estou apenas dizendo o que sinto...

E no final das contas, eu acabarei sendo mesmo um engenheiro. Mas se querem saber, o dono de todas essas filosofias expressas em poemas, esse próprio Álvaro de Campos, também era engenheiro... E como Álvaro, para que esteja completa a minha infelicidade, mesmo tendo por profissão a engenharia, talvez eu nunca consiga deixar de ser um filósofo... Talvez eu nunca pare de questionar o valor de todas as coisas e continue sempre com essa matemática fria da vida...


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Segunda-feira, três da tarde.

Se ao menos houvesse alguém a dar algo pela minha existência... Se ao menos existisse uma alma que viesse compartilhar essas angústias comigo... No entanto, se existisse uma pessoa assim, eu não teria escrito nada disso que escrevi, teria guardado os sentimentos, como sempre foi natural. Se escrevi, foi porque não encontrei alguém para quem pudesse dizer tudo. Ou talvez tenha sido porque desde criança eu não aprendi a contar os meus sentimentos, talvez essa pessoa até exista... Se há alguém que se tenha dado ao trabalho de ler tudo isso e que se vê na mesma situação que eu, que venha falar comigo...

terça-feira, 19 de abril de 2011

Miserere mei, Deus

Domingo passado decidi sair à rua e ir acompanhar a Procissão de Ramos. Não tomei a iniciativa de me misturar à multidão e participar da passeata, mas ao menos de longe pude presenciar o fervor dos católicos. Eu havia voltado a experimentar o vazio da existência, e precisava novamente preenchê-lo com a fé. Não há alegria maior que a do reencontro com Deus. A seguir, publico dois poemas e uma música que para mim expressam bem esse sentimento.



O Convertido

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza...
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!

Antero de Quental

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Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler –
A Bíblia, em português (coisa curiosa!), feita para protestantes
E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A "
Primeira Epístola aos Coríntios"...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade".
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
"Se eu não tivesse a caridade"...
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!...

Álvaro de Campos

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Misericórdia, misericórdia!
Misericórdia, mísero sou,
Porém brindo à vida!

Mas que mistério é a minha vida,
Que mistério!
Sou um pecador do ano de oitenta mil,
Um enganador.
Mas onde estou e o que faço,
Como vivo?
Vivo na alma do mundo
Perdido, vivendo intensamente!

Misericórdia, mísero sou,
Porém brindo a vida!

Eu sou o santo que te traiu
Quando estavas só,
E vivo displicente e observo o mundo
La do céu.
E vejo mares e florestas,
Vejo a mim mesmo que...
Vivo na alma do mundo
Perdido vivendo intensamente!

Misericórdia, mísero sou,
Porém brindo a vida!

Se houver uma noite escura o suficiente
Para me esconder, esconde-me.
Se houver uma luz, uma esperança,
Sol magnífico que resplandece dentro de mim,
Dá-me a graça da vida
Que ainda não tenho!

Misericórdia, misericórdia!
Aquela dádiva da vida que talvez
Ainda não tenha.

Zucchero

domingo, 3 de abril de 2011

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão


"Para que serve a linguagem?

A linguagem é a forma como percebemos o mundo. Os elementos do mundo exterior só adquirem relevância para o homem quando são apreendidos por meio da linguagem, ou seja, quando são nomeados. A percepção humana que não consegue se traduzir em palavras corre o risco de ser considerada caótica, absurda e sem sentido.
A linguagem é a forma como interpretamos a realidade. Além de nomear e, com isso, dar contorno e sentido às percepções humanas, as línguas também servem para traçar relações entre os dados da experiência, situando-os em categorias mais amplas e organizando nosso mundo mental.
A linguagem é uma forma de criar novos universos. Fazendo uso da linguagem, o indivíduo pode compartilhar projetos, sonhos, fantasias, criando mundos hipotéticos, utopias que podem servir, depois, como referência para conduzir a ação humana na História."

Da apostila Anglo.


Nietzsche e a linguagem cristã

Toda pessoa que conheça um pouco da filosofia moderna sabe que Nietzsche foi um crítico ferrenho do cristianismo. Nem todos, porém, sabem de que forma essa crítica foi construída, isto é, em que bases o filósofo se apoiou para elaborá-la, quais são seus fundamentos. É justamente sobre a questão da linguagem cristã, isto é, a forma como o cristão compreende a realidade em que vive, que Nietzsche construiu sua filosofia. Para Nietzsche, a compreensão que o cristão tem da realidade está completamente equivocada.
Numa compreensão mais sincera da realidade, livre de conceitos e valores criados e estabelecidos pelo homem, a única lei moral válida, isto é, realmente existente na ordem natural do mundo, é a lei da selva, a lei do mais forte. O que o cristianismo fez, na visão de Nietzsche, foi atribuir valores metafísicos à realidade, com o objetivo de torná-la mais agradável. Esses, porém, antes não existentes de fato no mundo, tornar-se-iam maléficos a ele.
Há que se dizer que a filosofia de Nietzsche tem relações com o espírito de época que regia o pensamento ocidental no século XIX, em que descobertas científicas puseram em cheque o valor da religião. Não é impossível traçar paralelos entre a filosofia de Nietzsche e o darwinismo. De acordo com a lei da evolução das espécies, para que haja evolução, tem de haver conflitos de toda ordem. A realidade é absolutamente fria, hostil e cruel para com todos os seres vivos, inclusive o homem. Nessa luta incessante pela sobrevivência e pela perpetuação da espécie, sua vida não deve possuir um sentido bem definido, senão o de dar curso à vontade cega de evolução da natureza.
A linguagem cristã, para Nietzsche, seria uma forma de tornar a vida algo menos sofrível, refugiar-se do estado natural e instável da vida, do caos, do medo da morte e da dor que a natureza nos pode proporcionar. O homem não quer participar dos conflitos que o ameaçam, repudia a morte e valoriza demasiado a idéia de estabilidade. A realidade, porém, é um conflito puro e incessante. Negando essa realidade, o homem cria valores próprios, códigos morais, leis, a idéia de justiça, as religiões. Estabelece como sendo do "bem" tudo o que não gera dor, e "mal" tudo aquilo que pode ameaçar a vida. Além disso, como é incapaz de evitar a morte, cria um reino de perfeição que deverá ser habitado pelos justos, após morrerem, e que não deverá estar aberto aos injustos.
Os conceitos de “bem” e “mal” são os valores básicos da moral cristã. O bem e o mal nunca existiram de fato e não passam de invenções da mente humana em busca de uma outra realidade. Eles são a negação da verdadeira realidade. Na natureza propriamente dita, apenas se vê existir o “bom” e o “mau”, sendo "bom" aquilo que mantém a espécie viva, independente de produzir ou não dor, e "mau" aquilo que lhe promove o inverso. A moral do "bem" e do "mal" é, para Nietzsche, a moral dos fracos, acovardados e pusilânimes, negadores da vida. Esses estarão sempre sujeitos à dominação, enquanto que o dominador deve se basear sempre nos termos "bom" e "mau".
Nietzsche considera que os valores cristãos sejam niilistas, ou decadentes, pelo fato de negarem a realidade e, por conseguinte, negarem a vida tal como ela é. Para Nietzsche, havia duas formas básicas de niilismo: o socrático-platônico (ou cristão) e o científico.
No pensamento de Sócrates, o homem deveria estar posicionado no centro de todas as atenções universais - a antropologia -, e deveria haver para ele uma espécie de ideal. O homem, nesse sistema, deveria ter em mente um ideal de perfeição ético e estético e deveria viver sempre de modo a aproximar-se cada vez mais desse ideal. Dessa forma, ele deixa viver a sua real vida, caracterizada por todos os conflitos próprios da natureza, e passa a viver em prol de uma outra vida ilusória, negando a primeira. Nietzsche considera esse idealismo uma forma de anti-vida, pois afirma que não existe uma perfeição para o homem. O que há é apenas mudanças de estado, não necessariamente direcionadas para uma finalidade maior ou um objetivo. Toda mudança se dá pelo devir. O cristianismo, para Nietzsche, é uma espécie de platonismo para o povo, por conter em sua essência os mesmos princípios fundamentais da filosofia socrático-platônica. Cristo negou a vida da mesma forma que ela foi negada por Sócrates. Romper com o cristianismo, para Nietzsche, é ser leal e sincero consigo mesmo, é assumir a vida tal como ela realmente é, sem ter a necessidade de inventar valores novos para viver.
Uma vez abandonado o cristianismo, entretanto, surge uma nova forma de negação da vida. O niilismo científico* é falta de esperança para com a vida, a perda da noção de progresso ocasionada pelo fim da idéia da existência de um deus. Nele, o homem se vê isento de toda vontade de agir, não há mais o ideal, não há um objetivo e, por conseguinte, um sentido para a vida. O combate do niilismo socrático fez surgir esse novo problema filosófico: o homem agora já não pretende mais nada, vive na passividade de sua vontade.
Contra esse niilismo passivo, Nietzsche convoca a idéia do eterno retorno, segundo a qual tudo o que ocorre, todos os atos e todos os fenômenos, voltarão a ocorrer um dia, pois o universo funciona de forma cíclica. Essa "descoberta científica" de implicações éticas faz com que o homem passe a ter amor pela existência, valorize cada momento do seu agir, como se tudo um dia fosse se repetir. Ao mesmo tempo, o filósofo valoriza a arte como forma de manifestação irracional, em oposição ao racionalismo de Sócrates. Não possuindo razão, não há como se questionar o valor da existência, e simplesmente se vive.
No final de tudo, o que Nietzsche desejou com a sua filosofia foi livrar a consciência humana dos falsos valores morais que ela criou, dar fim à idéia de harmonia e à negação da dor e, por conseguinte, da vida. O filósofo valorizou o conflito, a naturalidade da selva incluída na mentalidade do homem. Em vez de negar a dor, ele preferiu encará-la, sofrê-la, pois soube que esse é o único modo de viver. "Dividiu a história da humanidade ao meio", como ele mesmo disse, com o fim de toda ordem moral, de toda valoração metafísica, de tudo o que Sócrates inventou e entregou à humanidade. Nietzsche matou Deus, o amor e a compaixão.

* O niilismo apresentado no vídeo abaixo como niilismo moderno ou reativo é entendido de uma maneira diferente da que foi expressa no texto acima como niilismo científico.


Mais sobre a estética na obra de Nietzsche:


Palestra sobre Nietzsche da escritora Viviane Mosé, autora do livro Nietzsche e a grande política da linguagem, no Café Filosófico da TV Cultura:




sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O anti-naturalismo católico

“O sexo é um santuário, tanto é um santuário que Deus permitiu que ele governasse a encarnação. Proteger e preservar o sexo é obrigação e medida saneadora de distúrbios mentais.”
“Se as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro, vamos dizer, nos recursos gustativos, nas mãos, na dactilidade com que as mãos executam trabalhos manuais, nos pés, se todas essas potências foram dadas ao homem para a educação, para o rendimento no bem, isto é, potências consagradas ao bem e à luz, em nome de Deus, seria o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas?”

Chico Xavier.




Existem na vida do homem três acontecimentos que são mais importantes que quaisquer outros. Dois deles, o primeiro e o último, não dependem da sua vontade, são o seu nascimento e a sua morte. O outro só pode ser realizado com o seu concurso, é a reprodução. Só a reprodução pode permitir a perpetuação da espécie. Nascer, morrer e reproduzir-se são, pois, as três principais coisas na vida do homem.
As religiões, assim que se habilitam a estabelecer postulados morais, o fazem com base na forma como reconhecem esses três acontecimentos. A lei divina que rege o mundo é única, mas cada religião a compreende à sua maneira, e é esta a origem das suas divergências.
Para o catolicismo, o prazer logrado no sexo é contrário à fé e corrompe a alma humana. No entanto, ao condenar o sexo, o catolicismo condena o mais nobre donativo ofertado por Deus ao homem.
O sexo foi a forma encontrada pelo Criador de unir as suas criaturas, as almas. É no sexo que duas almas podem mais profundamente demonstrar o amor que sentem uma pela outra; no seu ponto culminante, essas duas almas se encontram fundidas. Nenhum ser vem ao mundo sem que tenha sido originado pelo ato sexual. O sexo, por fim, tende a criar laços de afetividade não só entre os dois seres que o realizam, mas também entre os que são gerados por ele.
O sexo está, pois, na natureza, e nada possui de contrário à profissão da fé. A religião que o condena não pode estar em acordo com a lei divina. A doutrina pregada por essa religião afasta o homem do ideal proposto por Deus, em vez de o aproximar dele. Por outro lado, a que sabe reconhecê-lo de forma divinizada e o preconiza, conhece com maior precisão a lei que rege a natureza e está mais apta a conduzir o homem para mais próximo dos propósitos divinos.
O catolicismo, quando considerou o prazer sexual como “pecado”, instaurou a idéia do sexo como sendo anti-divino. A anti-divinização do sexo pelo catolicismo é a anti-naturalização da sua doutrina. O hinduísmo foi muito mais sábio quando criou um guia para o sexo,o Kamasutra.
É preciso que o mundo ocidental rompa com os preconceitos criados pelo catolicismo e que a humanidade passe a compreender o sexo por uma nova perspectiva. Assim ela será mais livre e consciente.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Reflexão sobre o uso da língua

Nota de antemão: não vou falar sobre a arte do beijo.
No vídeo a seguir, uma análise do escritor português José Saramago sobre o modo como utilizamos a linguagem na nossa vida quotidiana, no presente e no passado.



"Parece que estamos num processo de involução em que estamos a voltar às cavernas. Para dizer a uma mulher que se gosta dela, somos capazes de dizer 'õ-õ', ou qualquer coisa assim, e ela ficará muito contente com isso que lhe disseram, desta maneira um pouco estranha, que é amada."

Saramago diz ter havido, desde os tempos primitivos da humanidade, uma evolução no uso da linguagem pelo homem, que se segue, nos últimos tempos, por uma involução do mesmo. A evolução se dá quando o homem passa a exprimir através de palavras suas emoções e seus pensamentos, e a involução ocorre quando essa capacidade deixa de existir. Primeiro, a língua se torna cada vez mais complexa, com a agregação de termos novos e a diversificação; depois, o homem não consegue mais utilizar as palavras para designar as coisas, e ela perde sua complexidade e volta ao seu estado rudimentar.
O processo é análogo ao que ocorre no campo da moralidade, do qual falei num texto publicado no blogue. Pode-se dizer mesmo que estão relacionados. A linguagem é o arcabouço que sustenta a cultura. Com a perda de uma, tem-se a da outra. Num tempo em que se torna a viver de modo animalesco, não se tem mais a necessidade de se comunicar, de exprimir os sentimentos. A morte do cristianismo coincide com a morte da linguagem.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Sobre o anarquismo na atualidade

A revista Veja desta semana publicou uma interessante reportagem sobre o movimento anarquista no século XXI.
Não se faz mais do anarquismo a idéia da ideologia criada na segunda metade do século XIX para resolver os problemas da classe social vítima de exploração. Hoje o anarquismo é tido como um estilo de vida a ser adotado por qualquer pessoa pertencente a qualquer classe.
Atualmente, para ser anarquista, basta ter disposição para protestar - e parece mesmo que o anarquismo tenha se resumido a se fazer protestos. Não é nem mesmo necessário reivindicar de forma egoísta ou em defesa de alguma classe a que se pertença, pode-se assumir causas alheias pelo simples gosto de reclamar. O importante é se vestir de negro, possuir pedras nas mãos e gritar contra os policiais - a razão disso menos importa.
O anarquista de hoje é um tolo sem objetivo algum, cujo único desejo é ver o circo a pegar fogo. O anarquismo, hoje, não é mais um meio para a transformação social, e sim para a promoção da bagunça e da desordem, para a expressão da "paixão pela destruição", que nada mais tem de criativa.

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"Os anarquistas não têm reivindicações próprias. Eles pegam carona em causas alheias. (...) Para os anarquistas, as questões que levaram gregos, italianos e ingleses às ruas são bobagens sem importância. Eles se aproveitam dos ingênuos para promover a quebradeira."

"Os valentes são playboyzinhos mimados que vivem de mesadas de seus pais milionários, alguns ícones da contracultura, seja lá o que isso for. Ou seja, nas ruas incendiadas, são os únicos sem nada a perder. Um dos vândalos identificados em Londres é o filho de David Gilmour, milionário guitarrista da pré-histórica banda de rock Pink Floyd. O valentão chama-se Charlie e foi fotografado paramentado todo de negro, atirando paralelepípedos na direção dos policiais. Um idiota sem causa."


O filho de David Gilmour

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Riquinhos sem causa revivem a anarquia

Os mais agressivos grupos radicais que incendeiam as ruas da Europa são integrados por vândalos que vivem de mesada de pais milionários.

Em meio à multidão de milhares de manisfestantes, rapazes vestidos de preto e com a cabeça e o rosto cobertos por capuzes, balaclavas ou capacetes caminham dispersos, tentando manter-se incógnitos. A atitude muda quando encontram um alvo: um cordão de isolamento policial, uma vitrine ou uma agência bancária. Então eles se agrupam e, aramados com porretes, pedras e garrafas de coquetel molotov, quebram, incendeiam e agridem. Quando a polícia reage, os vânadalos voltam a se misturar à massa de gente que protesta pacificamente, na esperança de, com isso, provocar um tumulto e incitar outros manifestantes a entrar no confronto. É a tática do 'black bloc' (bloco negro, em inglês), cujo uso se intensificou nos protestos de rua que dominaram a Europa neste ano. Quase sempre, a minoria violenta é formada por anarquistas - que, de seus análogos do início do século XX, imitam os métodos violentos e o ódio ao capitalismo e ao estado.
Estima-se em 245 o número de grupos anarquistas na Europa. Só nas últimas duas semanas, essas gangues, que se organizam pela internet e cruzam fronteiras para participar das pancadarias, causaram tumulto em três países no intervalo de seis dias: Inglaterra, no dia 9, Itália, na terça-feira 14, e Grécia, no dia seguinte. Ao todo, 200 pessoas ficaram feridas. Os anarquistas não têm reivindicações próprias. Eles pegam carona em causas alheias. Em Atenas, 23 000 protestaram contra a aprovação de um pacote de austeridade fiscal, necessário para que a Grécia continue recebendo o socorro financeiro da União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que salvaram o país da falência, no início do ano. No dia anterior, em Roma, a manifestação de 50000 pessoas pedia a deposição do primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O chefe de governo italiano, acusado de abuso de poder e envolvido em escândalos sexuais, acabou vencendo por apenas três deputados, o voto de confiança no Parlamento e permanecerá no cargo. Em Londres, 50000 estudantes se reuniram contra o aumento do custo do ensino universitário. Para os anarquistas, as questões que levaram gregos, italianos e ingleses às ruas são bobagens sem importância. Eles se aproveitam dos ingênuos para promover a quebradeira. São os principais suspeitos de atacar o carro do prícipe Charles, em Londres.
Mas quem são esses formidáveis e destemidos guerreiros urbanos? Errou quem pensou no sal da terra, em indivíduos miseráveis revoltados e embrutecidos pela infrutífera luta pela vida nas metrópoles hostis e indiferentes... Nada disso. Os valentes são playboyzinhos mimados que vivem de mesadas de seus pais milionários, alguns ícones da contracultura, seja lá o que isso for. Ou seja, nas ruas incendiadas, são os únicos sem nada a perder. Um dos vândalos identificados em Londres é o filho de David Gilmour, milionário guitarrista da pré-histórica banda de rock Pink Floyd. O valentão chama-se Charlie e foi fotografado paramentado todo de negro, atirando paralelepípedos na direção dos policiais. Um idiota sem causa.
"Invadam Atenas, Londres e Roma!" A frase pichada nos muros da capital grega demonstra que há mais em comum entre os acontecimentos recentes nas três cidades do que a tática do 'black bloc'. Os anarquistas de cada país não agem isoladamente. Na semana passada, a Scotland Yard divulgou a foto de catorze suspeitos de participar dos distúrbios, entre os quais cidadãos argentinos, alemães, italianos e letões. Eles repetem um fenômeno ocorrido entre 1999 e 2001, no auge dos protestos antiglobalização que transformaram as cidades-sede de cada encontro de chefes de estado em campos de batalha. Já naquela ocasião, eram anarquistas os responsáveis por incitar a violência policial. O anarquista russo Mikhail Bakunin (1814-1876) escreveu: "A paixão pela destruição é também uma paixão criativa". Por isso, o anarquismo sempre foi avesso ao jogo político tradicional. O que vale é a ação direta, violenta, nas ruas. Em 1909, anarquistas espanhóis aproveitaram protestos populares contra o recrutamento militar para incendiar igrejas e executar padres, provocando uma reação violenta do Exército que resultou em 150 mortos. O episódio ficou conhecido como Semana Trágica. Cem anos depois, a tática está de volta. "Vamos atacar de novo em janeiro", disse à Veja um mebro do grupo anarquista Whitechapel, da Inglaterra, que se identifica como Alex McLure. É o inverno dos anarquistas de butique. Pena que não existam mais tropas de choque como antigamente.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O progresso religioso

O natal está próximo, e eu me vejo obrigado a publicar algo relacionado à religião. A seguir, um texto do filósofo espiritualista francês Léon Denis, extraído de seu livro "O Progresso". O texto põe em conflito duas formas de religião: uma que reprime o livre-pensamento e proíbe a liberdade de consciência, e outra que se baseia na ciência e está de acordo com as leis universais. É um convite a olhar para a religião por uma nova perspectiva e, por conseqüência, a ter uma nova concepção da moral e uma nova idéia de Deus.


A criação de Adão, Miguel Ângelo



Léon Denis

O Progresso, cap. V - O Progresso Religioso

"Após ter lançado um rápido olhar sobre essas duas faces da questão do progresso: o problema político e o problema social, resta-nos examinar uma terceira face do assunto, que não é nem a menos delicada, nem a menos perigosa, isto é, a questão religiosa.
Aqui, mais do que nunca, devo esforçar-me para permanecer numa esfera elevada dos princípios, evitando descer para a arena onde se agitam as paixões furiosas e onde se entrechocam os interesses espezinhados.
O que é a religião? E é preciso uma religião? A palavra religião vem do latim religare, que significa religar, unir.
Tomada no sentido exato da palavra, a religião deveria ser uma força, um elo que unisse os homens entre si e que os unisse também a um princípio superior das coisas.
Na alma humana existe um sentimento natural que a eleva acima de si mesma para um ideal de perfeição no qual se resumem essas potências morais denominadas o bem, a verdade e a justiça. Esse sentimento, quando está esclarecido pela ciência, quando é fortificado pela razão, quando tem por base essencial a liberdade de consciência, da consciência autônoma e responsável, é o mais nobre de quantos possamos conhecer.
Ele pode tornar-se um motor das maiores ações e é também uma das manifestações da lei sublime de progresso. Todavia, senhores, não é o que acontece entre as religiões que cobrem a superfície do mundo. E quando eu digo as religiões, pretendo falar das religiões sacerdotais.
O sentimento religioso, mantido e desenvolvido por elas, é baseado na liberdade de consciência, é motivo de progresso, é um liame para a humanidade?
Não! Vós sabeis que essas religiões se excluem mutuamente, combatendo-se e perseguindo-se quanto podem. Cada uma delas pretende ser a única verdadeira, a única legítima, e cada uma delas acusa as outras de erro ou impostura e as outras, por sua vez, lhe devolvem suas acusações e seus anátemas.
Entretanto essas religiões, tão hostis entre si, entendem-se todas num ponto: é quando se trata de oprimir o pensamento, de paralisar sua evolução secular, de combater o pensamento em suas aspirações, em seus esforços para o progresso. Todavia foram homens de progresso que as fundaram, espíritos sequiosos de justiça e apaixonados pelo bem que as estabeleceram. Eles se chamaram Cristo, Buda, Confúcio. Eles trabalharam e sofreram pela humanidade, porém, quando partiram, seus sucessores se apoderaram de suas idéias e as modificaram ao bel-prazer, fazendo delas um instrumento de servidão, de domínio; o culto e a fé ficaram como uma pedra sepulcral que as castas sacerdotais quiseram colocar sobre o pensamento e a liberdade. Porém, após séculos de silêncio e de morte, o pensamento, que não pôde morrer, despertou. Saiu do túmulo onde acreditaram tê-lo sepultado para sempre e eis que ele se ergue na luz, diante de velhas fórmulas, de dogmas obscuros, e chamando para si a humanidade inteira, ele lhe diz: Julga e sentencia entre nós.
Em matéria religiosa, o problema se coloca, em nosso país, entre o Catolicismo e o livre pensamento. O Cristianismo primitivo, saído do meio do povo e que combatia a aristocracia e o sacerdócio judeu, tinha começado pelo Comunismo, pela eleição dos padres, dos padres casados.
O Catolicismo, continuador do Cristianismo, apresentou a infalibilidade papal e no Syllabus a declaração de princípios, cujo último artigo é este: “Anátema contra aqueles que pretendem que o pontífice romano deve se reconciliar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna.”
Não me limitarei a examinar os dogmas e os ensinos do Catolicismo e cada um de vós pode dedicar-se a esse exame. Limitar-me-ei a fazer um paralelo no que nos ensina, de um lado, a religião católica e, de outro, a ciência apoiada na razão, a propósito de duas concepções essenciais que dominam toda a existência humana e toda a organização social, isto é, sobre a concepção do universo e da finalidade da vida.
As idéias que fazemos sobre a organização do universo, sobre o papel que cada um de nós deve desempenhar nesse vasto teatro do mundo, tais idéias, vós compreendeis, senhores, são de uma importância capital, porque é após elas que nós devemos dirigir todos os nossos atos. É consultando-as que assinalamos uma finalidade para a vida e marchamos para esse fim. É aí que está a base de toda a civilização; é essa concepção do mundo e da vida que inspira toda a organização e fornece ao corpo social sua direção e sua forma de governo.
Portanto daí resulta que, se tal idéia está de acordo com a verdade, as leis sociais estarão calcadas em leis naturais e a harmonia reinará no mundo; se essas idéias estiverem erradas e contrárias às leis do universo, daí decorrerão o caos, a esterilidade, a decrepitude.
Examinemos, então, a concepção do mundo como o Catolicismo nos revela e sobre a qual está estabelecida a sociedade monárquica, feudal e autoritária. O mundo, o universo, diz a Igreja, foi criado em seis dias e há sete ou oito mil anos, pela única vontade de Deus, que fez todas as coisas do nada.
Deus, diz o catecismo do Concílio de Trento, formou os céus. Enfeitou-os com o Sol, a Lua e outros astros, para servirem de sinais, distinguindo as estações e os dias, depois segue a enumeração da obra de cada um dos seis dias da criação, durante os quais Deus fez sair da terra, num momento espontâneo, os homens, as plantas e os animais. Assim, agradou um dia a Deus criar o mundo, porém Deus fica fora de sua obra como a obra está fora do obreiro.
Esse universo, tirado do nada, pode ser destruído, aniquilado e Deus o mantém e governa através do milagre.
O homem, pelo pecado original, está condenado ao sofrimento, ele não se pode salvar por si mesmo, nem merecer o céu sem o socorro da graça, isto é, do bel-prazer, e sempre diante dele, como uma ameaça terrível, aparece a perspectiva dos braseiros eternos. Assim, não há nenhuma idéia de lei, de ordem e de solidariedade. Nada além da vontade de Deus e do capricho do Todo-Poderoso.
É sobre essas noções que o mundo viveu durante vinte séculos e é sobre esses fundamentos que se edificou a sociedade da Idade Média. No que concerne à estrutura do universo, são Tomás de Aquino acrescenta que a Terra, centro do universo, está imóvel, recoberta por uma abóbada sólida, firmamentum, dividida em várias camadas, que se engastam umas nas outras, e que os astros são como centelhas, cravos de ouro colocados nessa abóbada como ornamentos.
Vejamos, agora o que nos diz a ciência sobre esse mundo, sobre esse universo. A Terra é um globo de três mil léguas de diâmetro que gira sobre si mesma e gravita em torno do Sol. Em sua corrida rápida ela percorre trinta mil léguas por segundo. Estamos longe da imobilidade e esse globo não é o único nas profundezas do céu.
De todos os lados há legiões de esferas, sóis incontáveis se movimentam nos abismos do espaço. Perto deles a Terra é um grão de areia, como um corpo mesquinho na família dos corpos celestes.
Entre os planetas que circulam em torno do Sol, um é setecentas vezes maior que a Terra (Saturno) e outro mil e quatrocentas vezes maior (Júpiter). Na superfície desses mundos o telescópio observa as mesmas aparências de vida existentes na Terra, havendo atmosferas carregadas de nuvens, continentes e mares. Distinguem-se cadeias de montanhas e acúmulos de neve e de gelo que cercam os pólos desses globos. Entretanto o olhar da ciência não pára por aí; ele sonda as regiões mais recuadas do céu e em nenhuma parte descobre os limites do universo ou uma abóbada sólida. Os limites recuam na medida em que a ciência avança, marcha, e o espaço se abre sempre mais prodigioso, mais insondável.
Todavia, por mais longe que a ciência lance seus olhares, por toda parte, por sobre todos os pontos dos céus, ela vê astros em quantidade infinita, isto é, mundos e mais mundos, terras, sóis, esferas dispersas aos milhões e formando grupos, famílias estelares, perto das quais a Terra e suas irmãs e nosso próprio Sol, apesar de suas mil e duzentas léguas de diâmetro, são como átomos, grãos de poeira perdidos na imensidade dos céus. No lugar de serem destinados a uma imobilidade eterna, todos esses mundos se agitam, se movem no seio das profundidades, gravitando uns em volta de outros e percorrendo milhares de léguas em sua corrida assustadora. Assim, por toda parte, o movimento, a vida se manifestando no espetáculo grandioso de uma criação que não começou, que jamais acabará, mas que prossegue numa transformação incessante, eterna, no seio de um espaço sem limites.
Se, do espetáculo desses mundos, lançarmos nossos olhares para a Terra, quantas coisas ela nos dirá. Embora pequeno, nosso planeta tem sua vida própria, sua função na imensa harmonia das esferas. Nas camadas superpostas que formam sua crosta, lemos sua história como nas folhas de um livro; seguimos, passo a passo, as fases de um desenvolvimento que durou, não seis dias, porém milhões de séculos, e vemos, não a marca de uma criação espontânea, mas de uma formação lenta, progressiva, submetida a leis imutáveis. Segundo essas leis, os mundos, como os seres, possuem seus períodos de juventude, de maturidade, de decrepitude, após os quais se dissolvem e desaparecem para dar lugar a novos astros. Quanto aos seres que os povoam, cada um deles, em vidas sucessivas e sempre renascentes, se eleva, de degrau em degrau, na escalada magnífica dos mundos, desde as formas mais rudimentares da vida até a plenitude da existência intelectual e moral.
Dessa forma o trabalho e o progresso se tornam a lei suprema do mundo; o arbitrário e o milagre desaparecem. A criação se faz através do tempo, tempo de esforços contínuos, pelo trabalho de todos os seres, solidários uns com os outros e no proveito de cada um.
É assim que, no lugar de um universo criado do nada, governado pela fantasia e pela graça, no lugar de uma monarquia absoluta, a ciência nos apresenta, no infinito dos espaços e dos tempos, a imensa república dos mundos, governada por leis imutáveis, acima das quais plana essa Razão consciente, que se conhece, que se possui e que é Deus.
E agora eu vos pergunto: após ter visto, no espetáculo do mundo iluminado pela ciência, manifestarem-se por toda parte esses grandes princípios universais de ordem, solidariedade, trabalho e progresso, a sociedade moderna pode ainda aceitar esses conceitos do passado, esses sistemas ultrapassados que nos apresentam o milagre e a graça planando sem cessar acima de tudo?
Podemos acreditar ainda em Josué parando o Sol, numa palavra, em todas as lendas e superstições que alimentaram nossa infância? Não, o ideal se transforma e cresce, e diante da luz de um novo dia as sombras e os fantasmas do passado vão desaparecer. O sentimento religioso não morrerá por isso, ele se tornará apenas mais racional e mais esclarecido. O próprio Cristo disse: “Um dia chegará em que o Pai não será mais adorado nem nos templos nem na montanha.”
É uma alusão à hora em que o pensamento humano, livre dos liames que o prendem, se elevará mais rápido em direção à verdade e à luz, para criar a religião do futuro, isto é, a religião natural, laica, que não terá necessidade de templos nem altares, na qual cada pai de família será o padre e no seio da qual se fundirão, como rios num oceano imenso, as crenças, as seitas que dividem e separam a humanidade.
Dirão, todavia, como será a moral, onde estará sua fonte, se não está mais nas religiões reveladas. A moral, responderei, está eternamente escrita na razão e na consciência do homem e não há necessidade dos ensinamentos dogmáticos para conhecer seu dever.
Escutai a voz interior que fala a cada um de nós, aos mais ignorantes como aos mais esclarecidos, dizendo-nos: Eleva-te pelo trabalho, pelo estudo e pela prática do bem. Eis aí a revelação por excelência e, bem melhor que os ensinos do dogma, é ela quem nos faz saber que nosso papel no mundo é trabalhar pelo nosso aperfeiçoamento e pelo da humanidade. Desenvolver nossas faculdades intelectuais e nossas qualidades morais; trabalhar para colocar na Terra o reino da justiça, da paz e da fraternidade, marchando juntos para esse fim distante, para esse ideal: a perfeição.
Eis a verdadeira religião e a única de acordo com as leis universais, a religião do progresso, a religião da humanidade!"

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Alguns poemas de Augusto dos Anjos

Trago agora mais poemas ao blogue.
Desta vez, o poeta que escolho é o brasileiro Augusto dos Anjos. Nenhum outro, ao meu ver, retratou tão bem em língua portuguesa o espírito de época do final do século XIX e do início do século XX. Percebe-se forte influência do pessimismo schopenhaueriano na sua poesia. Esta é sombria, lúgubre e taciturna, é a mais precisa representação na arte da dúvida existencial e do niilismo. Escolhi sete de seus poemas, alguns dentre os mais conhecidos e outros que são da minha preferência, mas poderia publicar dezenas deles sem perder sua preciosidade.
Para ser sincero, Augusto dos Anjos é, entre todos, o meu poeta predileto.


Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Cruz do Espírito Santo - PB, 20/4/1884 - Leopoldina - MG, 12/11/1914).



AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

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O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

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PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

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BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

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ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... 0 vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenados à Morte, assim como eu!

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VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

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QUEIXAS NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais.
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
E vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!


sábado, 13 de novembro de 2010

Reflexões defronte à tabacaria

A partir de hoje, publicarei poemas no blogue. "Poems, no less! Poems, everybody!" - como bradava o professor inglês no filme The Wall, musical do Pink Floyd, levantando os escritos de um de seus alunos com o intuito de ridicularizá-lo.
É bem verdade que existe muita filosofia dentro da poesia e que, às vezes, um poema de cunho filosófico é de maior valia que um ensaio escrito com todos os artifícios da argumentação, não pela filosofia que ele contém em si, mas por ser capaz de manifestar um estado mental ou emocional do ser que pensa, o filósofo.
Já publiquei uma enormidade de textos de caráter existencialista, e com relação aos poemas não poderia ser diferente. O primeiro que trago é, na minha opinião, o que mais bem retrata o que é a vida para um filósofo existencialista: Tabacaria, de Fernando Pessoa, "psicografado" pelo heterônimo Álvaro de Campos.
Nenhum outro poema, ao meu ver, retratou tão bem o sentimento do niilismo, da angústia perante a absurda descoberta da insignificância que é existir, do vazio surgido quando se tem a consciência de que se está vivo, de que se vai morrer um dia e de que nisso nada há de especial. Este poema mostra claramente qual é o nível de relação que um niilista tem com o mundo externo a ele, nenhum. A estrofe da garota que come chocolates representa bem a idéia: esse filósofo jamais será capaz de sentir na boca com mesma intensidade o sabor doce do chocolate com o qual ela se delicia. Ele pensa e, por pensar, perde o contacto com o mundo. Observa-se aqui o mesmo que se pôde ver na passagem em que Nietzsche fala sobre Hamlet, que publiquei no blogue há algum tempo.


Fernando Pessoa, em Lisboa.


Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928