domingo, 21 de fevereiro de 2010

A utopia marxista

Como pensar filosoficamente esta realidade sem se importar com a questão social? E como se importar com a questão social e não colocar-se a analisar o marxismo? Todo filósofo tem a obrigação de ser um pouco sociólogo. E todo sociólogo tem necessariamente de dar seu veredicto sobre o pensamento de Karl Marx - talvez o mais importante dos sociólogos até hoje e por todo o tempo por que perdurar a sociedade capitalista. Abaixo, um texto que escrevi em 2009 em que falo justamente sobre tal questão. Confiram.



“A teoria política marxista jamais foi posta em prática nas sociedades que se auto-denominaram socialistas. Isso também é impossível” – tal é a proposta deste artigo, tentar provar, através da comparação entre o conceito - a priori - de sociedade comunista, descrito por Marx e Engels em seus livros, e a prática - a posteriori - socialista adotada na Rússia, em Cuba e na China, a assertiva escrita acima. Para começarmos, é razoável apresentarmos, de forma resumida, o esboço teórico do socialismo descrito por Marx.
O comunismo, na sua forma básica, isto é, no planejamento marxista, numa palavra, é a tentativa de se construir uma sociedade onde não haja desigualdades entre os homens. Resta saber de que modo Marx e Engels propõem isso, para que possamos criticá-los.
Marx foi, em vida, filósofo, historiador, economista e sociólogo. Foi o primeiro pensador a analisar a história das sociedades apontando a base da evolução das mesmas no embate dialético. Marx criou uma forma de análise dos modos de organização social com base na dialética hegeliana, onde tese + antítese = síntese. Hegel determinara essa forma de análise para o diálogo, no processo de formação da idéia. Marx o transportou para a teoria política. “Marx transforma todos os conceitos que Hegel concebeu como predicados da idéia em anunciados sobre fatos.” Para Marx, em todas as sociedades que já existiram, houve a classe dos dominadores e a classe dos dominados, e as modificações na forma de relação entre os homens surge sempre do conflito entre essas duas classes, onde a primeira representa a tese, organização social vigente e dominante, e a segunda, a antítese, a proposta de mudança. Do conflito entre essas duas partes, surge a síntese, nova ordem social formada.

“Toda a história das sociedades é a história da luta de classes.”
– Karl Marx, O Manifesto Comunista.

Ao construir sua filosofia, Marx baseia-se no filósofo iluminista Rousseau. Para Rousseau, o fato de o homem se organizar em sociedade, relacionando-se desse forma, possui uma causa. Essa causa é a necessidade de relação mútua entre os indivíduos para que possam evoluir materialmente. É nesse ponto que surge a ordem moral, uma condição necessária para se viver em sociedade. Para que um homem possa se relacionar com outro, deve haver, entre eles, um contrato que estabeleça as regras dessa relação. Nesse contrato estariam incluídas as normas morais às quais ambas as partes envolvidas no mesmo teriam de se submeter. Esse é o caso de uma relação fundada em direito legítimo, que em prática jamais existiu. Marx nos mostra que em todas as sociedades já existentes, o contrato firmado entre os homens para que pudessem se relacionar foi fundado de forma injusta. Sempre houve uma classe que obteve vantagem sobre a outra, havendo exploração. Eis o ponto em que se origina a desigualdade entre os homens, na fundação de uma convenção social de direito ilegítimo.
Marx aproveitou dessa teoria de Rousseau para construir sua crítica ao capitalismo; segundo ele, uma relação injusta. No capitalismo a classe dominadora e exploradora é a burguesia, e a classe oprimida, o proletariado. Marx apontou a mais-valia, uma espécie de roubo de parte do salário merecido pelo operário por aquilo que fabrica na indústria, como o ponto de origem da exploração capitalista. O burguês, dono dos meios de produção, emprega o operário em sua fábrica, este produz determinado produto, o qual possui determinado valor. Em vez de receber todo o dinheiro advindo da venda de tal produto, o operário, que o fez em sua totalidade, recebe apenas parte, denominada salário. A outra parte fica com o burguês, o ser ocioso, que assim ganha o seu lucro. Através da divisão do trabalho e do advento da maquinaria, o burguês ainda pode aumentar seu lucro, no processo que se chama aumento da mais-valia relativa. Tal teoria foi perfeitamente apresentada na obra O Capital, de autoria de Marx.
Contra essa ordem social injusta, Marx propôs o comunismo, a sociedade em que quaisquer diferenças entre os homens seriam extintas. Sempre a classe opressora, em qualquer sociedade que já existiu, teve controle dos artifícios do aparelho do Estado, como a educação e as forças armadas, que lhe garantiram o poder, através da repressão e da alienação da classe oprimida. A sociedade comunista representaria, então, o fim do Estado, o início de uma nova era na História da humanidade.
Para Marx, o que faria a sociedade comunista existir seria, seguindo sua própria teoria, um processo revolucionário. Contra a tese existente, a dominação burguesa, insurgir-se-ia uma antítese, a força revolucionária proletária, e esse processo originaria uma síntese, a ditadura do proletariado, o controle do poderio da nação pelo proletariado através da força, até que a força contrária da burguesia fosse atenuada. Após isso, do estágio do socialismo passar-se-ia ao comunismo. Diferentemente dos socialistas utópicos, o socialismo-científico, ou marxista, seria um processo isento de idealismos; seria puramente material, pois estaria estabelecido sobre o processo histórico-dialético natural, o qual o próprio Marx analisou.
É esse o ponto sobre o qual repousa a utopia marxista, em pensar que o simples processo histórico, puramente mecânico e material, daria origem a uma sociedade onde os homens se relacionassem totalmente com base na sua racionalidade. A própria história das sociedades “socialistas” encarrega-se de nos mostrar que Marx estava completamente enganado. Marx partiu do pressuposto de que todo o proletariado constitui força exclusivamente comunista no processo da revolução. O que se viu praticar na Rússia, na China e em Cuba foi a tomada do poder por um pequeno grupo de proletários, geralmente a parte mais intelectualizada dessa classe, sem que a total massa de trabalhadores, necessária à verificação do processo dialético, tivesse participado. Esse desrespeito ao processo histórico fez surgir naturalmente uma nova forma de exploração: as lideranças socialistas fundaram uma real ditadura para tentarem literalmente adestrar o povo. Prova disso é Mao Tsé-Tung ter obrigado os chineses a lerem o seu Livro Vermelho, no qual são visíveis as distorções de seu regime em relação ao esboço teórico de Marx e Engels. Esse processo de controle do povo torna-se desgastante, uma vez que os homens, todos eles, encontram-se em níveis diversos de evolução moral e intelectual. Tal processo foi perfeitamente apresentado por George Orwell, em forma de sátira, no seu livro A Revolução dos Bichos, em que animais de uma granja realizam uma revolução política e se libertam de seus proprietários, mas logo os ideais de igualdade firmados entre eles são substituídos pela repressão dos porcos, os líderes revolucionários e seres mais intelectualizados do grupo.
O comunismo verdadeiro, descrito por Marx, depende da convergência de ideais entre todos os participantes da classe dos explorados, depende daquilo que Rousseau definiu como a organização da Vontade Geral da nação. É esse o ponto onde Marx se torna um pensador utópico, ao imaginar que uma simples revolução faria surgir uma perfeita sociedade. Mais que o embate entre classes, é preciso que os participantes dessas classes estejam conscientes de qual é o seu papel na estrutura da organização social. Marx sonhou alto ao conceber que todos os proletários tivessem consigo os princípios da racionalidade, os quais fazem surgir o princípio ético do indivíduo. A evolução individual, moral e intelectual, faz-se então necessária anteriormente à revolução política. A única esperança que resta ao verdadeiro marxista, depois dessa exposição sobre a real condição evolutiva da humanidade – demasiado utópica, para não dizer impossível – é educar e conscientizar a classe dos trabalhadores, pois só então o processo dialético, o qual Marx sonhou, poderá ser verificado.
Por conclusão final, podemos dizer que Marx deu uma contribuição preciosa aos campos da Filosofia, da Sociologia, da História e da Economia ao analisar a evolução das sociedades sob a ótica da dialética; mas cometeu um grave engano ao pensar que do simples embate entre as forças opostas do capitalismo fosse possível originar-se uma convenção social justa, sem levar em consideração o estágio moral-intelectual em que se encontra o homem em geral. A formação da sociedade comunista só poderia ser considerada de ordem natural quando do momento em que todos os homens estivessem num mesmo nível de evolução intelectual. Sem a formação de uma consciência filosófica é impossível que ele tenha em si o princípio ético da sociabilidade, e sem que todos os homens saibam pensar e agir corretamente é impossível que a sociedade como um todo possa chegar a um estágio de perfeição. Rousseau já havia sido utópico ao conceber a ilusória possibilidade de que todo um povo pudesse se relacionar com base num contrato que atendesse ao desejo de todos os seus integrantes; todos os homens são diferentes entre si, e a sociedade, como um todo, não está sujeita a um molde: ao reconhecer essa verdade, Voltaire foi mais sábio que Rousseau, e é por se estabelecer sobre o pensamento rousseauniano que a idéia política marxista é um equívoco.



“[...] Olhando pela encosta da colina, Quitéria ficou com os olhos cheios de água. Se pudesse exprimir seus pensamentos, diria que aquilo não era bem o que pretendiam ao se lançarem, anos atrás, ao trabalho de derrubar o gênero humano. Aquelas cenas de terror e sangue não eram as que previra naquela noite em que o velho Major, pela primeira vez, os instigara à rebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro, veria uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de acordo com sua capacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos, como ela protegera aquela ninhada de patinhos na noite do discurso do Major.
Em vez disso - não podia compreender por que - haviam chegado a uma época em que ninguém ousava dizer o que pensava, em que os cachorros rosnantes e malignos perambulavam por toda parte e a gente era obrigada a ver camaradas feitos em pedaços após confessarem os crimes mais horríveis. Não tinha em mente idéias de rebelião ou desobediência. Sabia que, por piores que fossem, as coisas estavam muito melhores do que nos tempos de Jones e que antes de mais nada era preciso evitar o retorno dos seres humanos. Acontecesse o que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpriria as ordens recebidas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não fora por aquilo que ela e todos os animais haviam esperado e trabalhado. Não fora para aquilo que haviam construído o moinho de vento e enfrentado as balas da espingarda de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora ela não tivesse palavras para expressá-los.”
– George Orwell, A Revolução dos Bichos.


Vítor Lopes S. Alves
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Bibliografia:
Jean-Jacques Rousseau – A Origem da Desigualdade
Karl Marx – O Capital
Friedrich Engels – Do Socialismo Utópico Ao Socialismo Científico
Marx e Engels – O Manifesto Comunista
Mao Tse-Tung – O Livro Vermelho
George Orwell – A Revolução dos Bichos


Leia também o próximo texto publicado no blog: "Que falta faz um Voltaire", de Reinaldo Azevedo.

2 comentários:

  1. Olá Vítor, parabéns pelo texto sobre Marx e o blog, gostei do que li.
    Abraços,
    Gabriel T. P.

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  2. João Marcos Terra Pereira25 de agosto de 2011 às 21:54

    Ótimo texto cara!! tá de parabéns pelo blog,a revolução dos bichos é um dos melhores livros que já li, você já viu o filme??
    Agente tem que combinar de ver um dia desses!
    Abração"

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