terça-feira, 30 de novembro de 2010

Alguns poemas de Augusto dos Anjos

Trago agora mais poemas ao blogue.
Desta vez, o poeta que escolho é o brasileiro Augusto dos Anjos. Nenhum outro, ao meu ver, retratou tão bem em língua portuguesa o espírito de época do final do século XIX e do início do século XX. Percebe-se forte influência do pessimismo schopenhaueriano na sua poesia. Esta é sombria, lúgubre e taciturna, é a mais precisa representação na arte da dúvida existencial e do niilismo. Escolhi sete de seus poemas, alguns dentre os mais conhecidos e outros que são da minha preferência, mas poderia publicar dezenas deles sem perder sua preciosidade.
Para ser sincero, Augusto dos Anjos é, entre todos, o meu poeta predileto.


Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Cruz do Espírito Santo - PB, 20/4/1884 - Leopoldina - MG, 12/11/1914).



AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

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O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

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PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

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BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

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ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... 0 vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenados à Morte, assim como eu!

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VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

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QUEIXAS NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais.
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
E vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!


6 comentários:

  1. Caro amigo, você tem sido muito pessimista,adora textos schopenhauerianos(não sei se é assim que escreve) no seu blog...apesar de tais poemas serem muito bons!

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  2. Chère amie, não que eu esteja sendo pessimista, eu acho que sou pessimista mesmo por natureza.

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  3. O poema "Alucinação à Beira-Mar" me lembra bastante uma música de Zé Ramalho chamada "Beira-Mar". Teria Zé Ramalho se inspirado em Augusto dos Anjos para a compor? Eis a música:


    Beira-Mar, Zé Ramalho

    Eu entendo a noite como um oceano
    Que banha de sombras o mundo de sol
    Aurora que luta por um arrebol
    De cores vibrantes e ar soberano
    Um olho que mira nunca o engano
    Durante o instante que vou contemplar
    Além, muito além onde quero chegar
    Caindo a noite, me lanço no mundo
    Além do limite do vale profundo
    Que sempre começa na beira do mar
    É na beira do mar...

    Ói, por dentro das águas há quadros e sonhos
    E coisas que sonham o mundo dos vivos
    Há peixes milagrosos, insetos nocivos
    Paisagens abertas, desertos medonhos
    Léguas cansativas, caminhos tristonhos
    Qua fazem o homem se desenganar
    Há peixes que lutam para se salvar
    Daqueles que caçam em mar revoltoso
    E outros que devoram com gênio assombroso
    As vidas que caem na beira do mar
    É na beira do mar...

    E até que a morte eu sinta chegando
    Prossigo cantando, beijando o espaço
    Além do cabelo que desembaraço
    Invoco as águas a vir inundando
    Pessoas e coisas que vão arrastando
    Do meu pensamento já podem lavar
    No peixe de asas eu quero voar
    Sair do oceano de tez poluída
    Cantar um galope fechando a ferida
    Que só cicatriza na beira do mar
    É na beira do mar...

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  4. A primeira semelhança marcante está no título do poema e da música. Porém, vejam a que existe entre os dois últimos tercetos do soneto e a segunda estrofe da canção:

    "Mas a alga usufrutuária dos oceanos
    E os malacopterígios subraquianos
    Que um castigo de espécie emudeceu,

    No eterno horror das convulsões marítimas
    Pareciam também corpos de vítimas
    Condenados à Morte, assim como eu!"

    "Ói, por dentro das águas há quadros e sonhos
    E coisas que sonham o mundo dos vivos
    Há peixes milagrosos, insetos nocivos
    Paisagens abertas, desertos medonhos
    Léguas cansativas, caminhos tristonhos
    Qua fazem o homem se desenganar
    Há peixes que lutam para se salvar
    Daqueles que caçam em mar revoltoso
    E outros que devoram com gênio assombroso
    As vidas que caem na beira do mar
    É na beira do mar..."

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  5. Nunca li Augusto dos Anjos!
    Quando eu ler, vou comentar sobre isto.

    Hehe, Beijos!

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  6. E aí Vítor, tudo certo?

    Cara, concordo com você quanto a genialidade do Augusto dos Anjos. Não que seja pra lhe fazer coro, mas também me chama muita atenção a poesia (e a prosa mais ainda) permeada de cenas noturnas, tristes e trágicas. Penso que essa poesia que você inseriu acima representa de fato a transição XIX-XX, exatamente no momento no qual há certa decepção com a ideia de progresso (humano e material) a despeito de qualquer coisa. O que o século XIX nos fez foi criar ilusões que o XX fez "questão" de solapar...

    Pra se aprofundar em leitura de qualidade penso ser necessário você ler (se não o fez ainda) Albert Camus, em duas obras: 'O Estrangeiro' e 'A Queda'.

    Abraço e até!

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