O texto que segue foi extraído do livro Urânia, do astrônomo e filósofo espiritualista francês Camille Flammarion, do séc. XIX. Trata-se da apresentação literária de um personagem fictício chamado Jorge Spero, filósofo por natureza que se põe a investigar a própria existência e a do mundo, e por isso se vê imerso numa crise de consciência. Creio ser esse um estado psíquico e emocional comum a todo filósofo, uma passagem obrigátoria a todo aquele que se põe a pensar com seriedade e sem medo de se frustrar com as próprias conclusões, quer seja superada ou não. A imagem é uma reprodução da pintura O Grito(1893), de Edvard Munch, que traduz bem aos olhos a angústia e o desespero narrados com maestria em palavras. Na próxima postagem revelo o modo pelo qual Spero consegue superar sua dor. Boa apreciação...

Urânia, Camille Flammarion
Parte II
Cap. I
[...]
O problema da Alma era a obsessão contínua de seu pensamento. Às vezes, abismava-se na indagação do desconhecido com tal intensidade de ação cerebral, que sentia sob o crânio um formigamento em que todas as faculdades pensantes pareciam aniquilar-se. Isto acontecia principalmente quando, depois de haver longamente analisado as condições da imortalidade, via desaparecer de súbito diante dele a efêmera vida presente, e perante o seu ser mental abrir-se à eternidade sem fim. Em face desse espetáculo da alma em plena eternidade, queria saber. A visão do seu corpo pálido e gélido, amortalhado em sudário, estendido em um féretro, abandonado no fundo de estreita cova, derradeira e lúgubre morada, debaixo da relva onde o grilo murmura, não lhe consternava tanto o pensamento quanto a incerteza do futuro.
– “Que serei eu? Que será feito de nós outros? repetia qual um choque de idéia fixa no cérebro. Se morremos inteiramente, que inepta comédia a da vida, com suas lutas e suas esperanças! Se somos imortais, que fazemos durante a interminável eternidade? De hoje há um século, onde estarei eu, onde estarão todos os habitantes atuais da Terra? e os habitantes de todos os mundos? Morrer para sempre, para todo o sempre, não ter existido senão um momento: que irrisão! não fora melhor cem vezes não ter nascido e não ter sofrido? Mas, se o destino é viver eternamente, sem jamais poder mudar coisa alguma à fatalidade que nos arrasta, tendo sempre em face a eternidade sem fim, como suportar o peso de semelhante destino? E é essa a sorte que nos espera! Se algum dia nos fatigássemos da existência, ser-nos-ia vedado fugir-lhe, ser-nos-ia impossível pôr-lhe fim! crueldade mais implacável ainda do que a de uma vida efêmera, esvaindo-se igual ao vôo de um inseto na frescura da noite. Porque, pois, nascemos? Para sofrer com a incerteza? Para não ver uma só de nossas esperanças manter-se em pés após o exame? Para viver, se não pensamos, iguais a idiotas, e, se pensamos, iguais a loucos? Nem fim, nem lógica em nada!... E nos falam de um Deus bondoso! E há religiões, padres, pastores, rabinos, bonzos! Mas a Humanidade não é mais do que uma raça de burlões e de burlados. A religião vale à pátria, e o sacerdote vale ao soldado. Os homens de todas as nações estão armados até aos dentes, para entreassassinarem-se entre si, feitos imbecis. E é o que eles podem fazer de mais sábio: é esse o melhor agradecimento que podem dirigir à Natureza pelo inepto presente com que os mimoseou – dando-lhes a vida.”
Eu tentava acalmar-lhe os tormentos, as inquietações, tendo preparado para meu uso uma certa filosofia que me havia relativamente satisfeito: o temor da morte, dizia-lhe, parece-me absolutamente quimérico. Não há senão duas hipóteses a formular. Quando adormecemos todas as noites, podemos deixar de acordar na manhã seguinte, e essa idéia, quando nela pensamos, não nos impede de dormir. Portanto, ou 1°: acabando tudo com a vida, não despertamos mais em parte alguma, e nesse caso é um sono que não foi terminado, que durará eternamente, – jamais saberemos coisa alguma a esse respeito; ou 2º: sobrevivendo a alma ao corpo, despertamos algures para continuar a nossa atividade. Neste caso, o despertar não pode ser terrível, deve antes ser sedutor, tendo toda a existência a sua razão de ser, e achando toda criatura, a mais ínfima e também a mais nobre, a felicidade no exercício de suas faculdades.
Esse raciocínio parecia acalmá-lo, mas as inquietações da dúvida não tardavam a reaparecer, agudas quais espinhos. Às vezes, vagava solitário nos vastos cemitérios de Paris, buscando entre os túmulos as alamedas mais desertas, escutando o zunido do vento nas árvores, o frêmito das folhas secas nos caminhos, o olhar perdido entre as sepulturas retangulares apertadas umas contra as outras, monumentos talhados para os mortos e medidos estritamente sobre o nada da criatura humana. Outras vezes, afastava-se pelos arredores da grande cidade, através dos bosques, onde inefáveis melancolias suspiram, e, durante horas inteiras, caminhava falando consigo mesmo, demorando-se até à noite, à saída do luar, aos pálidos raios desse Sol noturno que parece ter sido feito para os mortos. Algumas vezes também permanecia um longo dia inteiro no seu aposento da praça do Panteão, aposento que lhe servia ao mesmo tempo de gabinete de trabalho, de quarto de dormir e de sala de recepção, e até alta hora da noite dissecava um cérebro trazido da clínica, estudando ao microscópio as delgadas laminazinhas da substância parda.
A incerteza das ciências chamadas positivas e a brusca parada do seu espírito na solução dos problemas lançavam-no então em violento desespero e, por mais de uma vez, o encontrei em inerte abatimento, com os olhos luzentes e fixos, as mãos ardendo em febre, o pulso agitado e intermitente. Em uma dessas crises mesmo, tendo sido obrigado a deixá-lo por algumas horas, acreditei não tornaria a encontrá-lo vivo, quando voltei pelas cinco horas da manhã. Tinha ele junto de si um vidro com cianeto de potássio, que procurou esconder à minha chegada. Logo, porém, recuperando a calma, com grande serenidade de espírito sorriu-me levemente. “Para quê! disse ele; se somos imortais, isto de nada serviria. Mas era para sabê-lo, mais depressa.” Confessou-me nesse dia ter acreditado que era dolorosamente erguido pelos cabelos até à altura do teto, para cair depois, com todo o peso, no assoalho.
A indiferença pública a respeito desse grande problema do destino humano, questão que a seus olhos primava sobre todas as outras, pois que se trata da nossa existência ou do nosso nada, tinha o dom de exasperá-lo no mais alto grau. Não via em toda parte senão gente ocupada em interesses materiais, unicamente absorta pela bizarra idéia de ganhar dinheiro, consagrando todos o curso da vida, todos os seus dias, suas horas e seus minutos a esses interesses disfarçados sob as mais diversas formas, e não achava nenhuma inteligência livre, independente, vivendo da vida do Espírito. Parecia-lhe que os seres pensantes podiam, deviam, ao mesmo tempo em que viviam as vidas do corpo, pois que de outro modo não é possível, ao menos, não ficar escravos de uma organização tão grosseira e dedicar os melhores momentos à vida intelectual.
Cap. II
[...]
Creio ter dito antes que o fundo do caráter daquele pensador era um tanto melancólico, dessa melancolia da alma de que fala Pascal, e parece ser a nostalgia do céu. Procurava, com efeito, perpetuamente, a solução do eterno problema do To be or not to be (ser ou não ser), de Hamleto. Por vezes, ter-se-ia podido vê-lo triste, aterrorizado ao ponto de morte. Mas, por singular contraste, quando os seus negros pensamentos se haviam, por assim dizer, consumido na elucubração e o cérebro, exausto, perdia a faculdade de vibrar ainda, dava-se nele uma espécie de repouso, um serenamento; a circulação do sangue vermelho reanimava-lhe a vida orgânica; desaparecia o filósofo para ceder o lugar a uma criança quase ingênua, de alegria fácil, divertindo-se de tudo e de nada, tendo quase gostos feminis, amando as flores, os perfumes, a música, o sonho, passando horas a examinar a estrutura e a vida de modesta planta, subindo a muros, ou aparentando, às vezes, pasmosa negligência.
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