Como prometi, agora trago a sequência da narração sobre Jorge Spero. Para aqueles que acreditam na existência neste universo de algo mais que a simples matéria bruta, e para aqueles a quem a vida não é um fruto vão do acaso, este texto tem especial importância. Percebam os raciocínios através dos quais Spero responde às suas indagações e consegue alforriar-se da náusea existencial. Notem mais uma vez o primor deste sábio escritor francês chamado Camille Flammarion.
Uma nota para melhor compreender o texto: a mulher com quem Jorge Spero dialoga é sua namorada, recém-conhecida no norte europeu. Aos que tiverem se interessado pela história, vale a pena ler a obra na íntegra.
Urânia, Camille Flammarion
Parte II
Cap. III
Era precisamente essa fase de vida intelectual que tão intimamente tinha associado as duas criaturas. Ditosa de existir, na flor da sua primavera, abrindo-se à luz da vida, harpa vibrante de todas as harmonias da Natureza, a formosa filha do Norte sonhava ainda por vezes com os elfos e com as fadas do seu clima, com os anjos e com os mistérios da religião cristã, que lhe haviam acalentado a infância; mas, a sua devoção, a sua credulidade dos primeiros dias não lhe haviam obscurecido a razão, pois pensava livremente, procurava, de ânimo sincero, a verdade e, lamentando talvez acreditar mais no paraíso dos pregadores, sentia-se, contudo, animada do imperioso desejo de viver sempre. A morte parecia-lhe uma cruel injustiça. Não tornara a reviver sua mãe estendida no leito de morte, formosa com todo o brilho dos seus janeiros, levada em pleno desabrochar das rosas a um cemitério vivente e perfumado, todo cheio do canto das aves, e riscada subitamente do livro dos vivos, ao passo que a Natureza inteira continuara a cantar, a florescer e luzir; não tornara mais a reviver, digo, o pálido semblante de sua mãe, sem que súbito calafrio lhe percorresse o corpo todo, da cabeça aos pés. Não, sua mãe não morrera. Não, ela própria não morreria, nem aos trinta, nem mais tarde. E ele? Ele, morrer! aquela sublime inteligência aniquilar-se pela parada do coração ou da respiração? Não, não era possível. Os homens se enganam. Saber-se-á algum dia.
Pensava também, às vezes, nesses mistérios sob uma forma antes estética e sentimental do que científica; mas pensava neles. Todas as indagações, as dúvidas, o secreto fim das conversações, do seu apego, tão rápido talvez, ao amigo, tudo isso tinha por causa a sede imensa de saber que lhe abrasava a alma. Esperava nele, porque em seus escritos encontrara já a solução dos maiores problemas. Tinham-lhe eles ensinado a conhecer o Universo, e acontecia que esse conhecimento era mais belo, mais vivaz, mais grandioso, mais poético do que os erros e as ilusões antigas. Desde o dia em que nesses livros aprendera que a vida do autor não tinha outro fim senão a procura da realidade, estava certa de que ele a acharia, e seu Espírito se agarrava, se unia ao dele, talvez mais energicamente ainda do que o seu coração.
Havia cerca de três meses que viviam assim, de uma vida intelectual comum, passando quase todos os dias algumas horas na leitura de memórias originais, escritas nas diferentes línguas, a respeito da filosofia científica, da teoria dos átomos, da física molecular, da química orgânica, da termodinâmica e das diversas ciências que têm por fim o conhecimento do ser; dissertando sobre as contradições aparentes ou reais das hipóteses, achando, às vezes, nos escritores puramente literários, relações e coincidências assaz surpreendentes com os axiomas científicos, admirando-se de certas presciências dos grandes autores. Essas leituras, pesquisas e comparações haviam sempre interessado pela eliminação que os seus Espíritos, cada vez mais esclarecidos, se viam levados a fazer dos nove décimos dos escritores, cujas obras são absolutamente vazias, e da metade do último décimo cujos escritos têm apenas um valor superficial! Tendo assim limpado o campo da literatura, viviam com certa satisfação, na restrita sociedade dos Espíritos superiores. Talvez entrasse nisso algum leve sentimento de orgulho.
Um dia, Spero chegou mais cedo que de costume. Eureca! exclamou. Mas retraindo-se prontamente: Talvez...
Apoiando-se à chaminé, onde crepitava vivo fogo, enquanto a companheira o contemplava com os seus grandes olhos cheios de curiosidade, começou a falar, com uma espécie de solenidade inconsciente, qual se estivesse conversando com o seu próprio Espírito, na solidão de um bosque:
– Tudo quanto vemos não é mais do que aparência. A realidade é outra.
“O Sol parece girar em torno de nós outros, levantar-se pela manhã e recolher-se à tarde, e a Terra em que estamos parece imóvel. O contrário é que é a verdade. Habitamos em torno de um projétil turbilhonante, lançado no Espaço por uma velocidade setenta e cinco vezes mais rápida do que a de uma bala de canhão.
“Harmonioso concerto vem encantar-nos os ouvidos. O som não existe, não passa de uma impressão dos nossos sentidos, produzida por vibrações do ar, de uma certa amplitude e de uma certa velocidade, vibrações silenciosas por si mesmas. Sem o nervo auditivo e sem o cérebro, não haveria sons. Na realidade não há senão movimento.
“O arco-íris abre o seu círculo radiante; a rosa e a centáuria, orvalhadas pela chuva, cintilam ao Sol; a verde campina e o sulco de ouro diversificam a planície com as suas vistosas cores. Não há cores, não há luz, não há senão ondulações do éter que põem em vibração o nervo óptico. Aparências enganosas. O Sol aquece e fecunda, o fogo queima; não há calor, mas somente sensações. O calor, e assim a luz, não passa de um modo de movimento. Movimentos invisíveis, mas soberanos, supremos.
“Eis aqui uma forte trave de ferro, dessas que geralmente se empregam nas construções. Está colocada no vácuo, a dez metros de altura, sobre duas paredes, nas quais se apóiam as respectivas extremidades. É sólida, com certeza. No centro dela foi posto um peso de mil, dois mil, dez mil quilogramas, e esse peso enorme ela nem mesmo o sente; muito será verificar-se, com o nível, uma imperceptível flexão. No entanto, essa trave é composta de moléculas que não se tocam, que estão em vibração perpétua, que se afastam umas das outras sob a influência do calor e se aproximam sob a do frio. Digam-me, por favor, que é que constitui a solidez dessa barra de ferro? Seus átomos materiais? Certamente não, pois eles não se tocam. Essa solidez reside na atração molecular, isto é, em uma força imaterial.
“Falando, de modo absoluto, o sólido não existe. Tomemos nas mãos uma pesada barra de ferro. Essa barra é composta de moléculas invisíveis, que não se tocam também. A continuidade que a superfície dessa barra parece ter e a sua aparente solidez são puras ilusões. Para o espírito que analisasse a sua íntima estrutura seria um turbilhão de mosquitos, lembrando os que redemoinham na atmosfera dos dias de verão. Aqueçamos essa barra que nos parece sólida: ela se derreterá; aqueçamo-la mais: ela se evaporará, sem por isso mudar de natureza: líquido ou gás, será sempre ferro.
“Estamos neste momento em uma casa. Todas estas paredes, soalhos, tapetes, móveis e esta chaminé de mármore são compostos de moléculas que também não se tocam. E todas estas moléculas, constitutivas dos corpos, se acham em movimento de circulação, umas em torno das outras.
“Nosso corpo está no mesmo caso. É formado por uma circulação perpétua de moléculas; é uma flama incessantemente consumida e renovada; é um rio a cuja borda vem a gente sentar-se, acreditando ver sempre a mesma água, mas onde o curso perpétuo das coisas traz uma água sempre nova.
“Cada glóbulo de nosso sangue é um mundo (e dele possuímos cinco milhões por milímetro cúbico). Sucessivamente, sem parada nem trégua, em nossas artérias e veias, em nossa carne, em nosso cérebro, tudo circula, tudo caminha, tudo se precipita, em um turbilhão vital, proporcionalmente tão rápido quanto o dos corpos celestes. Molécula por molécula, o nosso cérebro, o nosso crânio, os nossos olhos, os nossos nervos e a nossa carne se renovam sem descanso e tão rapidamente que, em alguns meses, o nosso corpo é reconstituído no todo.
“Partindo de considerações fundadas nas atrações moleculares, tem-se calculado que, em uma gotinha minúscula de água obtida com o auxílio da ponta de um alfinete, gotinha invisível a olho nu, medindo um milésimo de milímetro cúbico, há mais de duzentos e vinte e cinco milhões de moléculas.
“Em uma cabeça de alfinete não há menos de oito sextilhões de átomos, seja oito mil bilhões de bilhões, e esses átomos são separados uns dos outros por distâncias consideravelmente maiores do que as suas dimensões, sendo aliás essas dimensões invisíveis mesmo ao mais poderoso microscópio. Se quisesse contar o número desses átomos contidos em uma cabeça de alfinete, destacando-se, por pensamento, um milhar por segundo, fora necessário continuar essa operação durante dois mil quinhentos e trinta séculos para acabar a contagem.
“Em uma gota de água, em uma cabeça de alfinete, há incomparavelmente mais átomos do que estrelas em todo o céu conhecido dos astrônomos – armados dos mais poderosos telescópios.
“Quem sustenta, no vácuo eterno, a Terra, o Sol e todos os astros do Universo? Quem sustenta essa longa trave de ferro posta entre duas paredes e sobre a qual se vão edificar vários andares? Quem sustenta a forma de todos os corpos? A força.
“O Universo, as coisas e as criaturas, tudo quanto vemos é formado de átomos invisíveis e imponderáveis. O Universo é um dinamismo. Deus é a alma universal: in eo vivimus, movemur et sumus. (Nele vivemos, nos movemos e existimos.)
“De igual modo que a Alma é a força que move o corpo, assim o Ser Infinito é a força que move o Universo! A teoria puramente mecânica do Universo fica incompleta para a análise que penetra no fundo das coisas. A vontade humana é fraca, em verdade, com relação às forças cósmicas. Entretanto, enviando um trem de Paris a Marselha, um navio de Marselha a Suez, eu desloco, livremente, uma parte infinitesimal da massa terrestre, e modifico o curso da Lua. Cegos do décimo-nono século, voltai ao Cisne de Mântua (Virgílio): Mens agitat molem.
“Se disseco a matéria, encontro, no fundo de tudo, o átomo invisível: a matéria desaparece, esvai-se em fumo. Se os meus olhos tivessem o poder de divisar a realidade, veriam através das paredes, formadas de moléculas separadas, através dos corpos, turbilhões atômicos. Os nossos olhos de carne não vêem o que existe. É com o olhar do Espírito que cumpre ver. Não nos fiemos no único testemunho dos nossos sentidos: há tantas estrelas acima de nossas cabeças durante o dia quantas há durante a noite.
“Não há na Natureza nem Astronomia, nem Física, nem Química, nem Mecânica: esses são métodos subjetivos de observação. Há apenas uma única unidade. O infinitamente grande é idêntico ao infinitamente pequeno. O espaço é infinito sem ser grande. A duração é eterna sem ser longa. Estrelas e átomos são um.
“A unidade do Universo é constituída pela força invisível, imponderável, imaterial, que move os átomos. Se um só destes cessasse de ser movido pela força, o Universo estacaria. A Terra gira em torno do Sol, o Sol gravita em torno de um foco sideral, móvel também; os milhões, os bilhões de sóis que povoam o Universo correm com maior velocidade do que os projéteis da pólvora; essas estrelas que nos parecem imóveis são outros tantos sóis arremessados no eterno vácuo, com a velocidade de dez, vinte, trinta milhões de quilômetros por dia, correndo todos para um fim ignorado, sóis, planetas, terras, satélites, cometas errantes... o ponto fixo, o centro de gravidade buscado pelo analista, foge à medida que o buscam e, na realidade, não existe em parte alguma. Os átomos que constituem os corpos movem-se relativamente com a mesma velocidade que as estrelas no céu. O movimento tudo rege, tudo forma.
“O átomo invisível é o ponto de aplicação da força.
“O que constitui essencialmente o ser humano, o que o organiza, não é a sua substância material, não é nem o protoplasma, nem a célula, nem essas maravilhosas e fecundas associações do carbono com o hidrogênio, o oxigênio e o azoto; é a força anímica, invisível, imaterial. É ela quem agrupa, dirige e retém associadas as inúmeras moléculas que compõem a admirável harmonia do corpo vivente.
“A matéria e a energia jamais foram vistas separadas uma da outra; a existência de uma implica a existência da outra; há talvez identidade substancial de uma e de outra.
“Que o corpo se desagregue de uma só vez após a morte, ou se desagregue lentamente e se renove perpetuamente durante a vida, pouco importa. A alma fica. O átomo psíquico organizador é o centro dessa força. Também ele é indestrutível.
“O que vemos é enganador. O real é o invisível.”
E começou a caminhar a largos passos. A moça o escutara com a atenção de quem escuta um apóstolo, um apóstolo muito querido, e, embora ele não tivesse, de fato, falado senão para ela, não parecera prestar atenção à sua presença, tão imóvel e silenciosa ela se conservara. Aproximou-se dele e tomou-lhe, nas suas, uma das mãos.
– Oh! disse, se ainda não conquistaste a Verdade, ela não te fugirá.
Depois, inflamando-se e aludindo a uma restrição muitas vezes expressa por ele, acrescentou Icleia:
– Acreditas ser impossível ao homem terrestre atingir a Verdade, porque possuímos apenas cinco sentidos, e uma multidão de manifestações da Natureza ficam estranhas ao nosso Espírito, nenhum caminho tendo para chegar até eles. De idêntica forma que a vista nos seria negada se privados do nervo óptico, a audição sem o nervo acústico, etc., assim também as vibrações, as manifestações da força que passam entre as cordas do nosso instrumento orgânico, sem fazer vibrar as que existem, permanecem desconhecidas. Concedo, e admito contigo, que os habitantes de certos mundos podem estar incomparavelmente mais adiantados do que os da Terra. Parece-me, porém, que, embora terreal, achaste.
– Minha querida – respondeu ele, sentando-se junto dela no vasto divã da biblioteca –, é certo que à nossa harpa terrestre faltam cordas, e é provável que um cidadão do sistema de Sírius risse das nossa pretensões. O menor pedaço de ferro imantado é mais forte do que Newton e do que Leibnitz, para achar o pólo magnético, e a andorinha conhece melhor do que Cristóvão Colombo ou Magalhães as variações da latitude. Que disse eu há pouco? Que as aparências são enganadoras e que através da matéria o nosso espírito deve ver a força invisível. É o que há de mais verdadeiro. A Matéria não é o que parece, e nenhum homem instruído nos progressos das ciências positivas poderia mais, hoje em dia, pretender-se materialista.
– Então – tornou ela –, o átomo psíquico cerebral, princípio do organismo humano, seria imortal, e assim todos os átomos, aliás, – se admitissem as asserções fundamentais da Química. Mas diferia dos outros por uma espécie de posição mais elevada, por lhe estar ligada à alma. E conservaria ele a consciência do seu existir? Seria a alma comparável a uma substância elétrica? Vi certa vez o raio atravessar uma sala e apagar as luzes. Quando tornaram a acendê-las, verificou-se que a pêndula tinha sido desdourada e que o lustre de prata cinzelada fora dourado em vários pontos. Há nisto uma força sutil.
– Não façamos comparações; ficariam mui distantes da realidade. Toda a luz que a Ciência pode trazer à Terra constitui uma fraca réstia, coada por debaixo da porta do desconhecido. Todos sabem que hão de morrer, mas não o acreditam. E poderíamos acreditar em tal? Poderíamos compreender a morte, não sendo ela, em realidade, mais do que uma mudança de estado – do conhecido para o desconhecido, do visível para o invisível? Que a alma existe no caráter de força não há dúvida. Que ela constitui um todo, uno com o átomo cerebral organizador, podemos admiti-lo. Que sobreviva, assim, à dissolução do corpo, concebemo-lo.
– Mas em que se torna ela? Para onde vai?
– A maior parte das almas nem suspeita sequer a sua própria existência. Sobre os mil e quatrocentos milhões de criaturas humanas que povoam o nosso planeta, noventa e nove centésimos não pensam. Que fariam eles, grandes deuses da imortalidade? A exemplo da molécula de ferro que flutua, sem sabê-lo, no sangue que pulsa sob as têmporas de Lamartine ou de Hugo, ou permanece fixa por algum tempo na espada de César; símile da molécula de hidrogênio que brilha no gás da sala da ópera ou se imerge na gota de água engolida pelo peixe no escuro fundo dos mares, os átomos viventes, que jamais pensaram, dormitam.
“As almas que pensam se conservam apanágios da vida intelectual. Guardam o patrimônio da Humanidade e o aumentam para o futuro. Sem essa imortalidade das almas humanas, que têm consciência do seu existir e vivem pelo Espírito, toda a história da Terra deveria terminar em nada e a Criação inteira, tanto a dos mais sublimes mundos quanto à do nosso ínfimo planeta, seria um falaz absurdo, mais miserável e mais idiota do que o detrito de um verme do subsolo. Ele tem razão de ser e o Universo não a teria!
“Imaginas tu os milhares de mundos, atingindo os esplendores da vida e do pensamento, para se sucederem sem fim na história do universo sideral, e não conseguindo senão dar nascimento a esperanças perpetuamente esvaecidas, a grandezas perpetuamente aniquiladas? Achamos bem nos fazer humildes, não podemos admitir o nada por fim supremo do progresso perpétuo, provado pela história toda da Natureza. As almas são as sementes das humanidades planetárias.”
– Podem elas então transportar-se de um para outro mundo?
– Nada é tão difícil de compreender quanto o que se ignora; nada é mais simples do que aquilo que se conhece. Quem, em nossos dias, se admira de ver o telégrafo elétrico transmitir instantaneamente o pensamento humano através dos continentes e dos mares? Quem pasma de ver a atração lunar erguer as águas do Oceano e produzir as marés? Quem se surpreende de ver a luz transmitir-se de uma a outra estrela com a velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo? Quando muito, só os pensadores poderiam apreciar a grandeza dessas maravilhas; o vulgo de nada se admira. Se algum descobrimento novo nos permitisse dirigir amanhã sinais aos habitantes de Marte e receber respostas, as três quartas partes dos homens, depois da amanhã, não ficariam surpreendidas.
“Sim, as forças anímicas podem transportar-se de um a outro mundo, não por toda parte, nem sempre, certamente, e nem todas. Há leis e condições. A minha vontade pode levantar o meu braço, atirar uma pedra, com o auxílio dos músculos; se pego em um peso de vinte quilos, ela ainda levantará meu braço; se quiser erguer o peso de mil quilos, não o poderei mais. Uns Espíritos são incapazes de qualquer atividade; outros têm adquirido faculdades transcendentes. Mozart, aos seis de idade, impunha a todos os ouvintes o poder de seu gênio musical, e aos oito publicava as duas primeiras sonatas, enquanto que o maior autor dramático que haja existido, Shakespeare, não tinha escrito ainda, antes dos seis lustros de idade, nenhuma peça digna do seu nome. Não se deve acreditar que a alma pertence a algum mundo sobrenatural. Está tudo na Natureza. Não há mais de mil séculos que a Humanidade terrestre se desprendeu da crisálida animal; durante dezenas de milênios, no decurso da longa série histórica dos períodos primário, secundário e terciário, não havia na Terra um único pensamento para apreciar esses grandiosos espetáculos, um único olhar humano para contemplá-los. O progresso elevou lentamente as almas. A Natureza está em incessante progresso; o Universo é um perpétuo futuro; a ascensão é a lei suprema.
“Todos os mundos – acrescentou ele – não são atualmente habitados. Uns estão na aurora, outros no crepúsculo. Em nosso sistema solar, por exemplo, Marte, Vênus, Saturno e vários dos seus satélites parecem em plena atividade vital; Júpiter parece não ter ultrapassado o seu período primário; a Lua já não tem, talvez, habitantes. Nossa época não tem mais importância na história geral do Universo do que o nosso formigueiro no Infinito. Antes da existência da Terra, houve, em toda a Eternidade, mundos povoados de Humanidades; quando o nosso planeta houver exalado o último alento e a derradeira família humana adormecer no definitivo sono, à borda da última lagoa do oceano gelado, inúmeros sóis rutilarão sempre no Infinito e haverá sempre manhãs e tardes, primaveras e flores, esperanças e alegrias. Outros sóis, outras Terras, outras Humanidades. O Espaço, sem limites, é povoado de túmulos e de berços. Mas a vida, o pensamento e o progresso eterno são a meta da Criação.
“A Terra é o satélite de uma estrela. Presentemente, e também no futuro, somos cidadãos do céu. Saibamo-lo ou ignoremo-lo, em realidade vivemos nas estrelas.”
Assim se entretinham os dois amigos a propósito dos graves problemas que lhes preocupavam o pensamento. Quando conquistavam alguma solução, embora incompleta, experimentavam verdadeira felicidade, por terem dado um passo mais na indagação do ignoto, e podiam mais tranqüilamente conversar depois sobre outras coisas, habituais da vida. Eram dois Espíritos igualmente sequiosos de saber, imaginando, com todo o ardor da mocidade, poderem isolar-se do mundo, dominar as impressões humanas e, em seu celeste vôo, atingir a estrela da Verdade, que lhes cintilava por cima das cabeças nas profundezas do Infinito.
Sem comentários:
Enviar um comentário