quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Nietzsche e a arte dionisíaca

Abaixo se encontram reproduzidos os dois parágrafos finais do capítulo 7 do primeiro livro de Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, no qual o filósofo desenvolve seus pensamentos sobre a Estética. Na seqüência, alguns comentários meus sobre o texto. Não sou ateu, nem seguidor de Nietzsche, apenas incorporo a ótica atéia e nietzschiana para poder interpretar a obra.



"A convulsão do estado dionisíaco, com a sua destruição das habituais barreiras e limites da existência, contém nomeadamente enquanto dura um elemento letárgico, no qual mergulha toda a vivência pessoal do passado. Assim se apartam, através desta clivagem de esquecimento, o mundo da realidade quotidiana e o da realidade dionisíaca. Mas logo que aquela realidade quotidiana se torna de novo consciente, ela é sentida com asco como tal; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto daqueles estados. Neste sentido, o homem dionisíaco assemelha-se a Hamlet: ambos lançaram um olhar verdadeiro para a essência das coisas e eles sentem como ridículo ou humilhante que lhes seja imposta a reordenação de um mundo saído dos eixos. O conhecimento mata o agir, requerendo este um envolvimento pelo véu da ilusão – esta é a lição de Hamlet, não aquela sabedoria barata do João-que-sonha, que não chega a agir por um excesso de reflexão, como se se tratasse de um excedente de possibilidades; não o refletir, não! – o verdadeiro conhecimento, o olhar para dentro da tremenda verdade, torna-se preponderante em relação a qualquer motivo que incite a agir, tanto em Hamlet como no homem dionisíaco. Agora já nenhuma consolação resulta, a nostalgia passa para além de um mundo depois da morte, para além dos próprios deuses; a existência vê-se negada, juntamente com o seu fulgurante reflexo nos deuses ou num Além imortal. Consciente da verdade uma vez contemplada, o ser humano vê então por toda a parte apenas o lado horrível ou absurdo do ser, entendendo agora a dimensão simbólica do destino de Ofélia, reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno: sente repugnância.
Aqui, neste supremo risco da vontade, aproxima-se a arte, tal feiticeira redentora com poderes curativos: só ela pode transformar aquela idéia de repugnâncias sobre os aspectos horríveis ou absurdos da existência em representações, com as quais se tornara possível viver: estas constituem o sublime, enquanto dominação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da repugnância pelo absurdo. O coro dos sátiros do ditirambo é a ação redentora da arte grega; no mundo mediador destes acompanhantes dionisíacos, esgotam-se aquelas convulsões anteriormente descritas."

Friedrich Nietzsche.



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"A beleza salvará o mundo." - Fiódor Dostoiévski.

Nota: o aforismo do escritor realista russo, embora construído para uma determinada finalidade, é passível de receber uma interpretação diferente. Tomando-o de maneira distinta do contexto em que é achado e livre das intenções do autor, pode-se entendê-lo por uma outra perspectiva, que é oposta - há que ser dito - à original. Esta nova perspectiva diz respeito à estética nietzschiana, e é somente sobre ela - e não sobre as idéias de Dostoiévski - que este artigo procura discorrer.

De que, afinal, o mundo deverá salvo? Qual a sua perdição? E por que a beleza? A resposta a todas essas indagações Nietzsche nos dá com maestria. O mundo está perdido, na visão do filósofo, pela dúvida, pela descrença, em suma, pelo conhecimento da verdade do absurdo que é viver, existir. "Olhar a essência das coisas" e "conhecer" nada mais querem dizer que reconhecer a realidade da morte tal qual ela é. O homem que reflete muito sobre a morte, exemplificado por Hamlet, de Shakespere, e não crê na possibilidade de superá-la, passa a enxergar a própria vida como algo insignificante e desprovido de qualquer valor, tendo ela uma duração ínfima e irrelevante na eternidade - o maior exemplo real dessa postura talvez tenha sido Schopenhauer. Essa pessoa a quem o mundo parece "saído dos eixos" passa então a viver como um niilista, desprovido de toda vontade de agir. Uma vez que um dia estará morto, e morto para todo o sempre, já não crê que nenhum de seus atos possam ter importância. "O mundo saído dos eixos" é o mundo que perdeu sua lógica, sua ordem, seu arranjo, é, para o niilista, a sua própria vida que saiu dos eixos. Não é, por exemplo, o mundo concebido pelo cristão, repleto de leis. A crença na ressurreição dá ao cristão uma falsa idéia de ordenamento do caos que é a realidade, o que, para Nietzsche, não passa de uma outra forma niilista de negar a vida e que, portanto, não o salva. O lançar "um olhar verdadeiro para a essência das coisas" significa para nós, ocidentais, nada mais que romper com o cristianismo e contemplar o abismo que beira a nossa existência - e foi esse o ato tomado pela Filosofia na Modernidade. No entanto, uma vez perdidos, uma vez naufragados no mar da descrença absoluta, que esperança podemos ter de voltar a nos alegrar com qualquer coisa? O que nos pode recuperar a expectativa diante de cada acontecimento?
O elemento dionisíaco, em O Nascimento da Tragédia, está associado à embriaguez e à ilusão. Nietzsche, não só nesse escrito, como em toda sua obra e em sua vida, tendo demonstrado isso através de seus próprios atos, valorizou o dionisíaco e, em contrapartida, subestimou ou menosprezou o apolíneo. A explicação disso é fácil: a embriaguez e a ilusão são as únicas experiências capazes de retirar, e não com muita dificuldade, aquele homem niilista do seu estado racional e mórbido, fazê-lo recuperar a vontade de agir e o desejo de viver. Uma vez que ele está embriagado, não pensa mais na morte, supera sua depressão e recupera seus momentos de felicidade. Hamlet, numa interpretação original feita por Nietzsche à obra-prima de Shakespeare, é o exemplo perfeito desse estado de coisas. Primeiro, experimenta o niilismo quando pensa: "Ser ou não ser, eis a questão"; depois, destrói-o incorporando o espírito do dionisíaco pela sua vontade de vingança a todo custo da morte do pai. Nesse sentido, a peça pode ser entendida como uma analogia perfeita à filosofia de Nietzsche.
Foi dito que a embriaguez e a ilusão são as duas coisas capazes de animar um homem, mas onde encontrá-las? Nietzsche, que detestava álcool e jamais pôs uma gota de bebida alcoólica na boca, só se refere a essas palavras em nível conotativo. Elas são a tradução do conceito de "arte dionisíaca". As principais fontes do dionisíaco são a música e a tragédia. Ler Hamlet, assim como ter contacto com qualquer forma dionisíaca de expressão, para aquele ser que vive no "mundo saído dos eixos", é embriagar-se e recuperar a vida. Esse fenômeno não pode ser compreendido por quem possui uma religião e uma crença na realidade deste mundo como não-caótico. O cristão tem o hábito de afastar instintivamente o medo da morte quando ele, involuntariamente, lhe chega à mente, e não alcança, portanto, a vista da "essência das coisas", o desacerto do mundo – num sentido mais filosófico. Mergulhar numa afirmação da morte e reconhecê-la de fato, rompendo com a falsidade das superstições, exige coragem e implica sérias conseqüências, leva inevitavelmente ao niilismo. É o homem chegado a esse estado, o niilista, que a arte se propõe a salvar. É o mundo moderno, o mundo ateu e que passa por um rompimento inevitável com a religião, que ela redime ao oferecer sua salvação.

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