quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Duas reflexões acerca da condição humana

Publico hoje mais dois textos do gênio francês Camille Flammarion. Na verdade, tenho um pequeno acervo de anotações de sua obra, as quais publico aqui somente para que possa me livrar delas - mas também para que possam lê-las. Os dois excertos que seguem também estão contidos no livro Urânia. São falas de personagens extra-terrestres criadas com a finalidade de analisar a situação em que se encontra a humanidade. Boa leitura.


Primeiro fragmento:

– Permite-me dizer-te desde já – exclamou o mais moço –, que o teu planeta está absolutamente errado, em conseqüência de uma circunstância que data de uns cem mil séculos. Era no tempo do período primário da gênese terrestre. Havia plantas já, e mesmo plantas admiráveis, e no fundo dos mares, e também nas margens, apareciam os primeiros animais, os moluscos sem cabeça, surdos, mudos e desprovidos de sexo. Sabes que a respiração basta às árvores para o seu nutrimento completo e que os mais robustos carvalhos, os cedros mais gigantescos, jamais comeram coisa alguma, o que não os impediu de crescer. Nutrem-se unicamente pela respiração. A desgraça, a fatalidade quis que um primeiro molusco tivesse o corpo atravessado por uma gota de água mais espessa do que o meio ambiente. Achou-a ele talvez agradável. Foi essa a origem do primeiro tubo digestivo, que tão funesta ação devia exercer sobre a animalidade inteira, e mais tarde sobre a Humanidade mesmo. O primeiro assassino foi o molusco que comeu.
“Aqui não se come, nunca se comeu, não se comerá jamais. A criação tem-se desenvolvido gradual, pacífica, nobremente, do modo pelo qual começara. Os organismos se nutrem, isto é, renovam suas moléculas, por simples respiração, qual o fazem as árvores terrestres, cada uma de cujas folhas é um pequeno estômago. Na tua cara Pátria, não se pode viver um só dia sem a condição de matar. Entre vós outros a lei de vida é a lei de morte. Aqui, a ninguém jamais acudiu a idéia de matar, sequer, um pássaro.
“Vós outros sois todos, mais ou menos, carniceiros. Tendes os braços cheios de sangue; os estômagos estão repletos de vitualhas. Como querem, com organismos tão grosseiros quanto esses, possuir idéias sãs, puras, elevadas – direi mesmo (perdoa-me a franqueza), idéias limpas? Que almas poderiam habitar semelhantes corpos? Reflete um momento, e não te enganes mais com cegas ilusões demasiado ideais para tal mundo.”
[...]
“O planeta terrestre está ainda em estado de barbárie. Vós outros ainda não encontrastes nada melhor do que o absurdo do duelo para resolver uma questão de honra. As instituições sociais são estabelecidas sobre o direito do mais forte e sobre o número brutal. A região mais civilizada da Terra é a Europa: todos os cidadãos são educados no culto do assassínio internacional, e impostos ultrajantes atiram (eu o vejo no teu espírito) seis bilhões por ano, mais de dezesseis milhões por dia nas casernas improdutivas. A guerra perpétua é a alegria imbecil dos pequenos, e a maneira de dominação para os grandes. Se os cidadãos, a qualquer país que pertençam, tivessem o bom espírito de recusa, todos, sem exceção, ao serviço militar, mereceriam o título de homens de senso. Eles não querem isto, porque amam a escravidão, e o estado de mediocridade do planeta é ainda muito delicioso para a besta humana.”


Segundo fragmento:

“Quanto é lamentável que as inúmeras criaturas que habitam a pequena morada não saibam onde estão! É lindíssima esta minúscula Terra, assim iluminada pelo Sol, com a respectiva Lua, mais microscópica ainda, parecendo um ponto ao lado dela. Levada no invisível pelas divinas leis da atração, átomo flutuante na imensa harmonia dos céus, tem ela o seu lugar e paira lá em cima, qual uma ilha angélica. Os seus habitantes, porém, o ignoram. Singular Humanidade! Achou a Terra demasiado vasta, dividiu-a em rebanhos e passa o tempo espingardeando-se reciprocamente. Há nessa ilha celeste tantos soldados quantos habitantes. Estão todos armados uns contra os outros, quando tão simples teria sido viver tranqüilamente, e acham glorioso mudar, tempos em tempos, os nomes dos países e a cor das bandeiras. É a preocupação favorita das nações e o ensinamento primordial dos cidadãos. Fora disso, empregam a existência em adorar a Matéria. Não apreciam o valor intelectual, ficam indiferentes aos mais maravilhosos problemas da Criação e vivem sem desígnio. Que lástima! Um habitante de Paris, que jamais tivesse ouvido pronunciar o nome dessa cidade, nem o da França, não seria mais estrangeiro do que eles em sua própria pátria. Ali! se pudessem ver a Terra daqui, com que prazer para ela regressariam, e seriam reformadas as suas idéias gerais e particulares! Então conheceriam, ao menos, o país em que habitam; seria um começo; estudariam progressivamente as realidades sublimes que os cercam, em vez de vegetar sob um nevoeiro sem horizonte, e em breve viveriam da verdadeira vida, da vida intelectual!”


Camille Flammarion.

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