segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Espiritualismo Francês do séc. XIX: reconciliação entre ciência e fé

Allan Kardec


O desvencilhamento da ciência da religião cristã no Ocidente remonta ao Renascimento Cultural; até então, o dogma religioso fazia-se a verdade absoluta, e a Igreja Católica possuía predomínio sobre as massas. O espírito cético, especulativo e contestador começava a surgir nos homens; com a Peste Negra, o homem de ciência percebeu que as medicinas eram mais eficazes que as preces em seu combate, e a fé foi posta em cheque pela primeira vez. A ciência começou a se desenvolver a passos largos, e as escrituras bíblicas, contraditas pelas leis naturais que a Astronomia, a Química e a Física revelavam, conseqüentemente, perdiam seu apreço. A Idade Medieval, dessa forma, caiu, e os tempos vindouros foram concedidos à Idade Moderna. Filósofos e cientistas não podiam mais permanecer nos mosteiros, e foram buscar seu espaço fora deles; lá permaneceram somente os dogmáticos, aqueles que se atinham cegamente à escritura, sem submeter suas verdades ao julgamento da razão. Ciência e religião, antes acopladas uma à outra, tornaram-se agora duas fontes distintas de conhecimento.
O homem científico perdeu, dessa forma, a única fonte de fé que possuía - não por vontade própria, mas por ter sido vítima de seu próprio esforço de progredir seu conhecimento do mundo. Foi nesse contexto de instabilidade nos meios filosóficos, que perdurou até o séc. XIX, que surgiu na França o Espiritismo kardecista. Como disse Léon Denis, “É nos tempos negros da história da Humanidade que o Alto prepara uma nova revelação.” Fora assim nos idos de Moisés: a revelação de justiça dera ordem ao comportamento social caótico; também com a vinda do Cristo: este novo messias fora um dos responsáveis por passar à humanidade a idéia de caridade, foi a revelação de amor, numa época em que o excesso de justiça e a ausência extremada de valores espirituais faziam da convivência social uma ordem rigorosa, sem afeições entre os homens.
Cada revelação foi adequada ao tempo em que veio à Terra, correspondendo às necessidades de evolução moral e intelectual da Humanidade em cada época. Via-se de forma premente a necessidade de uma nova revelação ao homem moderno: seu espírito cético o levara a perder a noção de espiritualidade e fé, ele se encontrava agora num abismo existencial, a caminho do niilismo.
Um caráter peculiar da revelação espírita é o de que ela não está personificada num único homem, mas é dada a pessoas diversas, por espíritos diversos, em todo o globo, o que facilita, propositalmente, sua assimilação pelos homens - já que é mais fácil crer em dois homens que dizem ter visto algo que em um só - e apressa sua disseminação por todo o planeta. Os fenômenos espíritas, que começaram a ocorrer com maior freqüência e com uma finalidade reveladora, intrigaram homens de ciência em toda a Europa. O renomado cientista cético Hippolyte Léon Denizard Rivail, responsável por introduzir o método de ensino Pestalozzi na França, o qual havia aprendido com o insigne mestre na Suíça, intrigado por tais fenômenos, foi impelido a analisá-los e estudá-los. Seu amigo Fortier o convidara a observar as mesas girantes, inicialmente ele descreu da possibilidade desse acontecimento, mas acompanhou-o numa das sessões em que o fato ocorria. Com uma investigação minuciosa, percebeu que eles eram motivados por uma causa inteligente e constatou que ocorriam mesmo pela ação dos espíritos. Sob o pseudônimo Allan Kardec, o cientista, que não pretendia ser seguido apenas pelo renome, mas, além disso, desejava que os homens tomassem a revelação com uma postura cética, e só então a aceitassem, escreveu as cinco obras básicas da Doutrina Espírita, nas quais se explica os fenômenos espíritas, a noção moral espírita, a mediunidade, entre outros temas. A revelação espírita, de caráter universal e codificada por Kardec, foi chamada a revelação de verdade.
Dando prosseguimento aos seus estudos, Kardec percebeu que todas as crenças religiosas de todos os povos repousam sobre um único princípio: o da imortalidade da alma e sua transmigração. Todas as religiões demonstram a idéia de Deus ao seu modo, e o modo como o fazia o cristianismo não pôde ser aceito pela ciência, rigorosa em seus conceitos. O advento do Espiritismo, apoiado nas bases sólidas da ciência espírita, dá ao cientista um novo caminho filosófico a seguir, uma fonte de fé e espiritualidade, sem que ele deixe de ser cientista. Sua vida, agora firmada sobre a certeza de que há motivos futuros para se viver, de que esta vida física é apenas uma das muitas que ele viverá, readquire sentido. Sabe agora que a morte não representa a aniquilação total do ser, que seu caráter e sua personalidade são preservados após o desencarne, isso lhe faz retomar a idéia de progresso, com a qual o niilismo se esfacela.

“A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se julgou existir entre essas duas ordens de idéias provém apenas de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância.
São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a irresistível lógica dos fatos.”
Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo

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