domingo, 3 de abril de 2011

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão


"Para que serve a linguagem?

A linguagem é a forma como percebemos o mundo. Os elementos do mundo exterior só adquirem relevância para o homem quando são apreendidos por meio da linguagem, ou seja, quando são nomeados. A percepção humana que não consegue se traduzir em palavras corre o risco de ser considerada caótica, absurda e sem sentido.
A linguagem é a forma como interpretamos a realidade. Além de nomear e, com isso, dar contorno e sentido às percepções humanas, as línguas também servem para traçar relações entre os dados da experiência, situando-os em categorias mais amplas e organizando nosso mundo mental.
A linguagem é uma forma de criar novos universos. Fazendo uso da linguagem, o indivíduo pode compartilhar projetos, sonhos, fantasias, criando mundos hipotéticos, utopias que podem servir, depois, como referência para conduzir a ação humana na História."

Da apostila Anglo.


Nietzsche e a linguagem cristã

Toda pessoa que conheça um pouco da filosofia moderna sabe que Nietzsche foi um crítico ferrenho do cristianismo. Nem todos, porém, sabem de que forma essa crítica foi construída, isto é, em que bases o filósofo se apoiou para elaborá-la, quais são seus fundamentos. É justamente sobre a questão da linguagem cristã, isto é, a forma como o cristão compreende a realidade em que vive, que Nietzsche construiu sua filosofia. Para Nietzsche, a compreensão que o cristão tem da realidade está completamente equivocada.
Numa compreensão mais sincera da realidade, livre de conceitos e valores criados e estabelecidos pelo homem, a única lei moral válida, isto é, realmente existente na ordem natural do mundo, é a lei da selva, a lei do mais forte. O que o cristianismo fez, na visão de Nietzsche, foi atribuir valores metafísicos à realidade, com o objetivo de torná-la mais agradável. Esses, porém, antes não existentes de fato no mundo, tornar-se-iam maléficos a ele.
Há que se dizer que a filosofia de Nietzsche tem relações com o espírito de época que regia o pensamento ocidental no século XIX, em que descobertas científicas puseram em cheque o valor da religião. Não é impossível traçar paralelos entre a filosofia de Nietzsche e o darwinismo. De acordo com a lei da evolução das espécies, para que haja evolução, tem de haver conflitos de toda ordem. A realidade é absolutamente fria, hostil e cruel para com todos os seres vivos, inclusive o homem. Nessa luta incessante pela sobrevivência e pela perpetuação da espécie, sua vida não deve possuir um sentido bem definido, senão o de dar curso à vontade cega de evolução da natureza.
A linguagem cristã, para Nietzsche, seria uma forma de tornar a vida algo menos sofrível, refugiar-se do estado natural e instável da vida, do caos, do medo da morte e da dor que a natureza nos pode proporcionar. O homem não quer participar dos conflitos que o ameaçam, repudia a morte e valoriza demasiado a idéia de estabilidade. A realidade, porém, é um conflito puro e incessante. Negando essa realidade, o homem cria valores próprios, códigos morais, leis, a idéia de justiça, as religiões. Estabelece como sendo do "bem" tudo o que não gera dor, e "mal" tudo aquilo que pode ameaçar a vida. Além disso, como é incapaz de evitar a morte, cria um reino de perfeição que deverá ser habitado pelos justos, após morrerem, e que não deverá estar aberto aos injustos.
Os conceitos de “bem” e “mal” são os valores básicos da moral cristã. O bem e o mal nunca existiram de fato e não passam de invenções da mente humana em busca de uma outra realidade. Eles são a negação da verdadeira realidade. Na natureza propriamente dita, apenas se vê existir o “bom” e o “mau”, sendo "bom" aquilo que mantém a espécie viva, independente de produzir ou não dor, e "mau" aquilo que lhe promove o inverso. A moral do "bem" e do "mal" é, para Nietzsche, a moral dos fracos, acovardados e pusilânimes, negadores da vida. Esses estarão sempre sujeitos à dominação, enquanto que o dominador deve se basear sempre nos termos "bom" e "mau".
Nietzsche considera que os valores cristãos sejam niilistas, ou decadentes, pelo fato de negarem a realidade e, por conseguinte, negarem a vida tal como ela é. Para Nietzsche, havia duas formas básicas de niilismo: o socrático-platônico (ou cristão) e o científico.
No pensamento de Sócrates, o homem deveria estar posicionado no centro de todas as atenções universais - a antropologia -, e deveria haver para ele uma espécie de ideal. O homem, nesse sistema, deveria ter em mente um ideal de perfeição ético e estético e deveria viver sempre de modo a aproximar-se cada vez mais desse ideal. Dessa forma, ele deixa viver a sua real vida, caracterizada por todos os conflitos próprios da natureza, e passa a viver em prol de uma outra vida ilusória, negando a primeira. Nietzsche considera esse idealismo uma forma de anti-vida, pois afirma que não existe uma perfeição para o homem. O que há é apenas mudanças de estado, não necessariamente direcionadas para uma finalidade maior ou um objetivo. Toda mudança se dá pelo devir. O cristianismo, para Nietzsche, é uma espécie de platonismo para o povo, por conter em sua essência os mesmos princípios fundamentais da filosofia socrático-platônica. Cristo negou a vida da mesma forma que ela foi negada por Sócrates. Romper com o cristianismo, para Nietzsche, é ser leal e sincero consigo mesmo, é assumir a vida tal como ela realmente é, sem ter a necessidade de inventar valores novos para viver.
Uma vez abandonado o cristianismo, entretanto, surge uma nova forma de negação da vida. O niilismo científico* é falta de esperança para com a vida, a perda da noção de progresso ocasionada pelo fim da idéia da existência de um deus. Nele, o homem se vê isento de toda vontade de agir, não há mais o ideal, não há um objetivo e, por conseguinte, um sentido para a vida. O combate do niilismo socrático fez surgir esse novo problema filosófico: o homem agora já não pretende mais nada, vive na passividade de sua vontade.
Contra esse niilismo passivo, Nietzsche convoca a idéia do eterno retorno, segundo a qual tudo o que ocorre, todos os atos e todos os fenômenos, voltarão a ocorrer um dia, pois o universo funciona de forma cíclica. Essa "descoberta científica" de implicações éticas faz com que o homem passe a ter amor pela existência, valorize cada momento do seu agir, como se tudo um dia fosse se repetir. Ao mesmo tempo, o filósofo valoriza a arte como forma de manifestação irracional, em oposição ao racionalismo de Sócrates. Não possuindo razão, não há como se questionar o valor da existência, e simplesmente se vive.
No final de tudo, o que Nietzsche desejou com a sua filosofia foi livrar a consciência humana dos falsos valores morais que ela criou, dar fim à idéia de harmonia e à negação da dor e, por conseguinte, da vida. O filósofo valorizou o conflito, a naturalidade da selva incluída na mentalidade do homem. Em vez de negar a dor, ele preferiu encará-la, sofrê-la, pois soube que esse é o único modo de viver. "Dividiu a história da humanidade ao meio", como ele mesmo disse, com o fim de toda ordem moral, de toda valoração metafísica, de tudo o que Sócrates inventou e entregou à humanidade. Nietzsche matou Deus, o amor e a compaixão.

* O niilismo apresentado no vídeo abaixo como niilismo moderno ou reativo é entendido de uma maneira diferente da que foi expressa no texto acima como niilismo científico.


Mais sobre a estética na obra de Nietzsche:


Palestra sobre Nietzsche da escritora Viviane Mosé, autora do livro Nietzsche e a grande política da linguagem, no Café Filosófico da TV Cultura:




1 comentário:

  1. Ler e discutir Nietzsche gera sempre um incômodo. Questionar valores dói. Não somente para os ignorantes, mas também nas mentes que se julgam mais brilhantes.

    Como já havia dito e confirmo com a leitura do que você escreveu, Vítor, a preocupação de Nietzsche não é simplesmente atear fogo na moral e ética humanas (leiam-se cristãs), como que num ato puramente iconoclasta.

    Creio haver uma finalidade em seu pensamento, para além do seu "super homem". E essa finalidade é preparar, educar o ser humano na conteção das suas decepções (de qualquer ordem)... o que paradoxalmente o aproxima não da ideia socrática em si de busca da verdade, mas no sentido dessa busca: o aperfeiçoamento humano, da existência humana. Aí, quase ninguém está disposto. Aí, mais uma vez essas pessoas rejeitam sair da caverna.

    Seriam os filósofos da Antiguidade tão díspares dos da Modernidade?

    Abraço e parabéns!

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